EdLua.Artes

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Blog mantido por Lua Rodrigues e por mim. Trata de Artes, Eventos Culturais, Filosofia, Política entre outros temas. (clique na imagem para conhecer o blog)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Gênesis - 15º Capítulo

E, nesse instante, foi que tudo que eu sentia, toda a minha vontade de ajudar, toda a minha humanidade, tudo virou compaixão. As palavras de Marília, a expressão dela, eu já havia vivido na minha própria pele. E como eu me senti injustiçado quando Felícia terminou desse mesmo jeito... Esse tempo todo eu achava que meu caso era único, que mais ninguém poderia ser tão insensível quanto Felícia foi naquele dia e terminar um namoro por causa de uma prova de amor. Mas, de repente, aparece alguém como eu! E justo quem eu menos esperava, uma escritora que usa tão bem as palavras. Sempre tive fascínio por escritores e estou até agora perplexo de Marília ser tão ou mais humana que eu... Eu achava que escrever exigia raciocínio de computador para analisar cada sentido de cada palavra e escolher sempre a mais precisa, mas não é bem assim...

- O que houve?- indaguei, creio que com uma expressão espantada, mas logo controlada, pois minha mente disparou um sinal de alerta para eu tomar cuidado por que estava caindo na rede emocional na hora mais errada, eu tinha que ficar frio e distante para poder analisar o que Marília tinha a me dizer.

- Paulo... Meu namorado e eu estávamos discutindo muita coisa a respeito do nosso futuro e isso estava deixando a relação tensa, eu acho...- explicou Marília fazendo muitos gestos com as mãos.- Eu percebia que ele estava se afastando, mas, sei lá, não conseguia mais confortar ele... Não sei se é bem essa a palavra...- ela olhou para as mãos e retomou um choro mais brando, mas ainda carregado com uma tristeza que precisava ser expressa, era perceptível que ela precisava falar sobre isso e precisava contar a história completa; por isso, não a interrompi e tirei o braço de seus ombros num gesto lento e assumi uma postura concentrada.- Por mais que eu abraçasse ele, por mais carinhosa que eu fosse, por mais calorosos que fossem meus toques, meus beijos, por mais feminina, por mais que eu precisasse dele, nada, nada, nada parecia ser o bastante e acho que ele mesmo percebia isso... Ele notava que estava frio e também tentava fazer diferente, mas não dava certo...-

A essa altura, eu tinha que me concentrar no que ela dizia e controlar tudo o que eu tinha escondido dentro de mim pra não confundir minha vida com a dela... Eu também sentia que tudo que eu fazia com minha ex-namorada já não surtia o mesmo efeito, um pouco antes dela terminar. Se bem me lembro, é uma sensação horrível, a gente vai perdendo auto-estima, vai se sentindo inútil e incapaz de fazer a pessoa da qual gostamos sorrir e depois nem se sentir seguro; e ai vem o desespero e as loucuras de amor; e daí por diante só tem o final da relação. Não quero nunca mais passar por essa cadeia de acontecimentos, por isso aprendi a depender só de mim mesmo, assim nada pode abalar minha auto-estima, mas nada pode elevá-la ao nível de felicidade, um pequeno preço a se pagar... Achei, até essa noite, que isso era um complexo da mente masculina, mas essa mulher me provou tanta coisa...

Essa mulher que está neste instante calada e cabisbaixa, ouvindo Paulo falar alguma coisa, provavelmente em tom áspero e desagradável como se fosse o dono verdade. Percebo isso pela expressão irada no olhar dele, parece que Marília chegou ao ponto de discutir atitudes que ela havia engolido para o bom desenvolvimento da relação e ele agora está devolvendo situações pelas quais ele tinha sofrido por ela. Se fosse há quatro ou cinco horas atrás, Marília assumiria tudo como erro dela e imploraria perdão, mas agora, depois da nossa conversa, acho que recuperei um pouco da mulher excepcional que ela realmente é. E pensar que isso tudo foi por causa de...

- ... E foi por isso que um pouco antes do carnaval, Paulo viajou para sua cidade natal, no interior... Ele disse que passar alguns dias distante de mim ia fazer bem pra nós dois, que estávamos nos machucando muito. Eu concordei.- continuou ela após beber mais um copo de água que peguei na recepção do hotel.- Imaginei que por pior que a gente estivesse, tudo daria certo no final... Durante esse tempo que ele ficou fora, eu fui pra casa da minha mãe... É uma casinha simples na área mias campestre daquela cidade onde você mora ou morava quando te conheci, Carlos... Você deve saber como são aqueles bairros afastados, né?...- confirmei com a cabeça.- Geralmente são propriedades familiares onde há três ou quatro casas no mesmo quintal... E, bom, minha mãe mora numa chácara assim com minha tia, minha irmã mais velha, minhas sobrinhas e uma prima que tem três filhos pequenos... Não sei por que, as crianças me adoram... Foi eu chegar lá e pronto! Tia Marília brinca com a gente, leva a gente pra nadar no rio, vem nadar com a gente, Tia... Aquela alegria inocente sempre me conquista e me contagia sabe... Ser criança é mesmo tão bom!- contou ela num tom mais feliz e com a face inundada por uma luz repentina que a deixa linda, pena que logo depois ela lembrou do fato fatal, por assim dizer.- Eu tirei meu pingente e o guardei pra não correr riscos de perder na correnteza do rio... Eu sabia o quanto era valioso pro Paulo... Ele havia me dado o pingente quando me pediu em namoro e disse que seria a nossa aliança, já que ele tinha outro igual... Paulo sempre tão diferente, tão inovador, ele é espetacular, surpreendente em tudo que faz... É isso que mais me atrai num homem e ele tinha isso de sobra. Depois de seis anos, foi a primeira vez que eu tirei o pingente em forma de coração do pescoço, mas era só pra garantir que eu...- mais um pouco de choro rolou suas faces.- Que ele... Que o nosso amor... Estaria... Preservado! Era só essa a minha intenção! Fiz algo tão errado assim, Carlos??? Eu errei em guardar o colar...??

Eu entendi que ela queria a minha resposta, mas ela não veio por que aprendi a não julgar ninguém entre certo e errado. Eu não podia responder com certeza, podia apenas arriscar algo similar a uma só para que aquele olhar de súplica fosse correspondido de maneira apropriada. No entanto, a compaixão ousada que eu estava sentindo queria responder que Marília estava certa. Ao mesmo tempo, minha mente buscava um modo de encaixar os fatos... Faltava uma parte da história. Como guardar o pingente havia causado uma separação tão dolorosa quanto uma traição? A resposta que consegui me parecia estúpida, mas havia acontecido comigo. E essa resposta foi confirmada após eu ter dito que faltava alguma coisa, não me lembro com quais palavras exatamente, depois de muito pensar.

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Continua... 6/2/12 às 15:00

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Abraços Ed

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Gênesis - 14º Capítulo

Me lembro que ela demorou pra se acalmar, o tempo é que não sei ao certo quanto foi. O choro da minha companheira me prendeu e me tragou de tal forma que me impediu de olhar para o relógio que estava na parede bem em frente. Minha concentração se ilhou em como acalmar Marília. Ofereci água e tentei falar palavras doces, mas acho que minha ironia habitual acabou complicando um pouco as coisas... Então, já que as palavras não deram muito certo, decidi instintivamente ir me aproximando para ter contato físico. Me perguntei por que eu estava fazendo aquilo e minha mente me deu a resposta diretamente: “Contato físico é uma forma primordial de conforto, desenvolvida desde a primeira infância com o colo e os cuidados da mãe. Em outras palavras, é a forma mais básica de relacionamento e comunicação, que se desenvolve até a idade adulta, se tornando, então, toda a expressão responsável pela libido e prazer sexual.” Minha própria introdução de um trabalho para uma disciplina optativa que buscava ligações entre a infância e o comportamento sexual dos adultos.

Mas havia um problema, fazia tanto tempo que eu não tinha um grau tão elevado de proximidade física com uma mulher que não estava sendo paga para isso e, portanto, preparada e receptiva a todo e qualquer contato... Eu não sabia o que fazer, ainda mais sendo estudante já tão avançado de psicologia... Eu sei bem que carinho significa muita coisa e, dependendo de onde se toca, pode ser interpretado de vários modos... Fiquei com medo de tocar no joelho, muito perto das pernas pode indicar interesse sexual, e aí a chance dela me achar um tarado era enorme. Mãos indicam intimidade e ligação afetuosa, mas ela poderia encarar como invasão de privacidade se eu tomasse a mão dela do nada. Pior seria no rosto, pra fazer carinho no rosto ou na cabeça é necessária uma dose altíssima de confiança, já que a máquina motriz, o cérebro, e todos os sentidos humanos estão concentrados do pescoço pra cima. Nas costas então, ponto cego, nem se fala o grau de confiança tem que ser quase sobrenatural... Eu não tinha um ponto seguro do corpo dela pra tocar, todos estavam ou ligados ao sexo ou a uma relação de extrema confiança. Creio que mexia muito as mãos enquanto pensava onde eu poderia fazer um carinho sem que ela se sentisse invadida... No ombro! Mas, que coisa! Só agora me lembrei, o ombro é como um ponto neutro do corpo, talvez o único.

Na minha indecisão, Marília deve ter percebido que eu estava inquieto e deve ter percebido minha intenção pelo modo com o qual eu aproximava a mão da mão dela, às vezes do rosto, mas nunca chegava a tocar... Ela pegou minha mão e segurou um pouco entre as suas, depois, lentamente aproximou minha mão de seu rosto e acariciou-o com as costas dos meus dedos... E eu enxuguei algumas lágrimas dela... E ela encostou a cabeça no meu ombro, já mais confortada e mais aberta. Por fim, ela colocou meu braço por trás de seu pescoço e minha mão no braço dela segurando minha mão com certa força e, depois de uns segundos, parou de chorar.

- Faz mais de três meses que não me sinto assim...- disse ela num suspiro relaxado e profundo.

- Assim, como?- naquela hora eu não entendia direito as emoções de Marilia.

- Tranquila... Segura...- me explicou ela, como se fosse óbvio.

- Como pode se sentir segura com um estranho?- estranhei parecendo um filósofo, mas creio que um leve sorriso apareceu por ter conquistado a confiança dela.

- Mas você não é um estranho...- disse ela num tom reflexivo e carinhoso.- Não depois de tudo o que você já fez por mim essa noite... Você podia ter me deixado a qualquer instante, mas você está aqui até agora, entende? Além do mais, realmente, não me sinto nem um pouco ameaçada por você. Acho que você só quer mesmo me entender e me ajudar...

- Bom, em uma coisa você tem razão.- falei em tom ameno e claro ao perceber que ela estava fazendo carinho na minha mão com o polegar.- Eu quero te entender... Quanto ao resto, eu já não sei...- ela me olhou e apertou minha mão como quem diz que não quer ser abandonada.

- Carlos...- ela ainda estava escolhendo as palavras, me chamou só pra não perder minha atenção e, sabendo disso, permaneci com o olhar fixo em seu rosto.- Eu não tenho nem dormido direito de tanto que minha história tem me machucado...- disse ela limpando os olhos com um lenço retirado da bolsa. Boa parte da maquiagem borrada ficou no papel e, por trás da sombra dos olhos dela, haviam olheiras causadas pelas noites mal-dormidas. Percebi, naquele gesto, certa necessidade de provar que realmente ela estava sentindo muita angústia e que as noites de insônia de fato ocorriam, mas ainda era cedo pra julgar se era pedido de socorro ou obsessão pela verdade.- Meu namorado... Depois de seis anos... Terminou comigo... Na quarta-feira de cinzas... Estou mal desde então, pois sei que ele está com a razão, mas...- suspirou.- Queria que ele me entendesse... só isso...

- Hum... E qual foi o motivo da separação?- e minha mente já se armava na defensiva... Casais se separam todo dia, é normal, absolutamente normal...- Se não quiser falar...- completei, afinal se ela ainda estava tão machucada, era bom dar a opção. Às vezes as lembranças torturam nossas emoções e eu me lembro que foi por isso que escolhi abandonar e reprimir o meu lado emocional... Não consegui apagar Felícia da memória como eu queria, mas tirei todo o sentimento das lembranças... Ou, pelo menos, imaginava ter tirado até ler aquela carta... E a imaginação criou uma certa realidade que me permitiu viver com segurança até aqui.

-Eu trai ele....- disse ela suspirando e olhando pro chão, depois de um minuto de reflexão.- Quer dizer, na verdade, ele se sentiu traído... Eu só queria proteger o que valia a pena, o nosso amor. E aí ele disse que era melhor terminar...

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Continua... 3/2/12 às 15:00

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Abraços Ed


sábado, 28 de janeiro de 2012

Gênesis - 13º Capítulo

Ela me olhou profundamente, como quem deseja se sentir seguramente confortável antes de falar qualquer coisa. Depois de alguns segundos, seu olhar mudou para uma expressão de quem diz que será uma longa história. Eu a olhei por inteiro tentando prestar atenção aos mínimos gestos. Ela segurava a bolsa na frente do corpo numa postura reflexiva, mas a expressão de sua face estava aberta, apesar das lágrimas que manchavam sua maquiagem. Maquiagem que só naquele instante eu tinha notado. Ela me olhava nos olhos e eu sabia que tinha que falar alguma coisa, mas a atmosfera criada entre nós era tão intensa e de isolamento que, mesmo sobre o efeito daquele olhar que me sondava e se sondava junto, não tinha palavras pra tentar uma aproximação. Ela então, olhou para a bolsa e tive a impressão de que ela estava se distanciando. Tenho a lembrança de ter dito algo sobre a bolsa, não me lembro o quê, mas só pode ter sido isso por que não imagino que outra coisa poderia ter gerado aquela resposta...

- Por que você é assim, tão materialista?- contestou Marília erguendo rispidamente a cabeça com um olhar incisivo.

- Porque, no fim das contas, tudo o que temos nesse mundo é nossa mente e aquilo que conseguimos por nós mesmos!- retruquei acentuadamente e ainda continuei como se eu acreditasse mesmo nisso. Bom, naquela hora eu ainda acreditava, mas agora eu mesmo me contesto sem saber exatamente no que acreditar.- Você só pode pesar coisas concretas. As emoções e sentimentos, por mais fortes que sejam, um dia se desfazem, os vínculos entre as pessoas sempre se quebram! E aí sobra só o que nós temos de concreto! O resto é vazio e sem sentido. E o que nós temos como certo é só aquilo que conquistamos, nossa vida e a certeza da morte!

- Você está errado, tem que estar...- disse Marília abaixando o olhar.- Não. Tem pequenas coisas que não têm preço, não há valor que recompense a perda dessas coisas. Eu sei por que acabo de perder algo muito importante. Você diz que tudo que tem valor ainda está aqui na minha bolsa, mas falta um pequeno pedaço de cristal que resumia grande parte da minha vida.- e chorou tentando expressar uma parte importante dela pra que eu pudesse ver mais de perto.- Não tem nada especial na sua vida? Você nunca ganhou algo que guardou com carinho porque significa algo relevante, mesmo que seja uma besteira, um bilhete, um origami... Enfim, algo que te faça chorar?

- Espera aí! Tà me dizendo que você ta chorando por uma pedrinha barata???- disse surpreso e depois de alguns segundos, continuei.- Um bilhete? Uma dobradura de papel? Entendo que pessoas chorem quando perdem algo de valor, uma casa, um carro, um celular com os telefones das pessoas queridas...- eu tinha esquecido completamente dessa carta num envelope rosa; naquele instante talvez eu só quisesse entender o que estava acontecendo nessa noite incomum de outono, durante a qual não só as folhas e flores dos ipês, mas os sentidos que montei com todo o cuidado pareciam cair como resultado de uma brisa qualquer.- Mas chorar por um pedaço de vidro...

- Não...- disse me olhando nos olhos, a escritora, sem nem fazer a mínima força pra tentar conter ou disfarçar os soluços e as lágrimas.- Era uma jóia falsa em formato de coração... Não... Não é pela jóia que eu choro, é pelo resto... Todo o resto, as últimas esperanças... Minhas últimas esperanças e sonhos passavam por aquela pedrinha de brilhante e pela carta... A carta, Meu Deus... Eu tinha escrito com o coração... Tinha... Eu tinha colocado tudo que eu precisava dizer naquele pedaço de papel, cada gotinha de sentimento... E foi tudo roubado, tudo!... Até a boa-ação que queria fazer pra compensar meus pecados... Até isso me foi roubado! Roubado!!... Aquele homem, coitado!... Não vai conseguir comprar nem pão... Nem pra dois dias!!... Aquele cristal deve valer uns dois ou três reais... Mas valia o mundo inteiro pra mim...- e depois da declaração cortada e incompleta, Marília se entregou ao choro e se isolou nele. Não importava o que eu fizesse ou falasse, ela continuava chorando...

Marília continua tentando fazer Paulo reagir, mas ele parece cada vez mais convencido de que a decisão dele está certa e demonstra claramente o desinteresse marcado pelo olhar totalmente vago, lançado ao horizonte, a postura fechada. Os braços cruzados e a acomodação de estar encostado de lado no batente da porta, dão a nítida impressão de que ele nem está ouvindo a pessoa que por anos dividiu tudo com ele. Parece que ele está ouvindo uma música bem alta num fone de ouvido. Só deve permanecer ali por algum respeito.

Felícia sempre me escutou. Meus olhos agora exibem algumas lágrimas também, acho que não aguentaram a curiosidade e leram a carta amassada de sete anos atrás. Mas não sei definir o que estou sentindo agora, só sei que não é amor, ou talvez só agora seja amor de verdade, sei lá... Fato é que minhas emoções afloraram de vez... Depois de sete anos mantendo a esperança lacrada num envelope, poder ler algo assim mexe com qualquer um, embora de maneiras diferentes...

“Carlos meu anjo, você devia estar preparado pra tudo sei que ninguém pode prever uma separação mas sei lá... parece que você ta forçando demais a barra... você sabe que nada do que você está fazendo vai me levar de volta pra você! Tudo o que você tem me dito, amor, não ta mais fazendo sentido nenhum... Eu confesso que me senti traída quando você me disse aquilo mas já passou eu sei o que você sente por mim só não sei se posso voltar e corresponder como era antes apesar de ainda te amar muito... na verdade eu já tinha percebido que nosso relacionamento já estava enfraquecendo eu já tava fraca você ainda veio falar aquilo tudo... Mas se é tão importante assim pra você... Vem conversar comigo, vamos tentar fazer do seu jeito... eu também preciso de algumas certezas que só terei com você então vem, mas por favor vem sem planos, nenhum de nós dois sabe realmente o que vai rolar e se te conheço bem você vai demorar algumas semanas pra me procurar, vou esperar você me ligar. não vai ser igual mas pode ser melhor como você disse... e se não for mesmo assim acho que temos mesmo que conversar olhando nos olhos como sempre fizemos e resolver isso de uma vez... beijos com carinho Felícia”

Poxa! Ta, legal... Confesso que não esperava assim tanta disposição... Ela tinha decidido me dar mais uma chance, a chance que eu tanto implorei! Felícia... Eu vivi sete anos numa esperança que podia ser real... Sete anos! É engraçado! Na verdade, não sei se é isso mesmo que me faz rir... Não sei se é engraçado, ridículo ou patético, mas sei que para quem me olha de fora devo estar parecendo feliz, devo estar rindo... Não é desespero, mas me sinto desnorteado... Quantas mil vezes eu tive vontade de ler essa carta, mas resisti racionalizando que tudo tinha acabado e armando defesas atrás de defesas???... Quanto tempo perdido, quanta vida perdida! Uma carta que não tive a hombridade de ler! Se eu tivesse lido antes até teria procurado pela dona daquela caligrafia irregular e meio quebradiça, mas feita com a caneta forçada no papel... Determinada ela sempre foi, pena que era orgulhosa demais e de temperamento inconstante...

Mas o engraçado é que sempre pensei que quando lesse essa carta me sentiria triste, mas acho que todo o meu esforço pra aprender a não me deixar levar não foi de todo em vão, pois, embora eu esteja lembrando de tudo que vivi com Felícia, sinto apenas saudade, não amor. Se me fosse permitido acho que iria procurá-la só para dar um abraço e deixaria o resto da vida acontecer, mas... Sete anos não são sete meses... Ela já deve ter casado e quem sabe tido até filhos, não deve mais nem se lembrar de mim... Por que estou olhando para o céu? Essa noite nublada e fria com traços de garoa está me lembrando a mim mesmo... Estou refletindo no ambiente a minha mente cheia de dúvidas e só um pouquinho lamentosa... Como teria sido este encontro ou essa vida alternativa? Acho que não teria dado certo, estávamos muito machucados pra tentar de verdade voltar... Mas e se, por acaso... Se por acaso, eu marquei a vida dela como ela marcou a minha... Ela pode até ter se envolvido com alguém, se casado até, mas ela... pode estar esperando por mim... Ela pode estar olhando para o céu também... Ela gostava das estrelas... Nossa! Quanta besteira estou pensando... É possível dar uma segunda chance a uma mesma emoção? Me pergunto ainda...

Marília tinha mesmo razão... A carta me surpreendeu. E agora, o que fazer com essa emoção??? Como de costume, Felícia transcrevia sua mente na escrita, ela estava sendo sincera ao escrever, mas eu percebo certa confusão... A ausência de cuidado na hora de usar as palavras sempre foi marca registrada dela. Mas, na época, isso era o de menos. Me lembro até com certa empatia de tudo o que vivemos, mas depois de tanto tempo não sei o que fazer... Minha mente racional está sem respostas, sem reação, enquanto as emoções se amontoam contraditórias. Agora entendo a mensagem real do livro de Marília... Agora entendo Pietro...

E pensar que isso tudo veio se desenrolando desde que Marília finalmente respondeu tudo o que eu queria saber, após eu ter conduzido ela a um hotel que ficava ali perto, na avenida, pois ela estava quase caindo, seu corpo já não tinha energia para ficar em pé tamanha a intensidade do choro. Nos sentamos num sofá no hall e procuramos ignorar os olhares estranhos da recepcionista a quem até cheguei explicar a situação, mas, pelo visto, minha sinceridade mal-treinada não tinha convencido muito...

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Continua.... 31/1/12 às 15:00

Por favor comentem o que acharam do capítulo de hoje;

Abraços Ed

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Gênesis - 12º Capítulo

- Eu gosto deste beco, tem meus olhos, meu rosto, meu cheiro e tudo o que percebo de minha intimidade, este beco é meu mundo. Um cubículo escuro espremido entre prédios.- dizia ela, eu posso ter perdido algumas palavras, mas o tom dessas não me pareceu de todo triste. Parecia mais reconhecimento lúcido, embora a voz de choro quase escondesse uma carga pesada de ironia.- Só tenho duas saídas: a pequena abertura por onde entrei me mostra, como janela, o abandono usando drogas e mulheres mentindo pra si mesmas, por necessidade, pra realizar os verdadeiros desejos dos homens estranhos...- o tom mudou para uma mescla de uma observação, que me pareceu muito crua, distante e nada pessoal naquela hora; mas, agora, entendo melhor a metáfora: ela estava tentando se ver de fora e de dentro ao mesmo tempo; tudo misturado com um pesar que perguntava a si o que as pessoas estavam fazendo. Ela fez uma longa pausa quase como se censurasse algumas palavras e escolhesse outras idéias, depois, continuou, num tom completamente diferente, intimista e profundo; dividindo o coração em partes, tentando numerizar sentimentos. Agora, sim, falava dela, mas era tão semelhante a mim, ao que eu tento fazer com minhas emoções.- A cidade levou das minhas mãos o meu coração, o coração de vidro que eu tinha acabado de resgatar da bagunça de um quarto de lixo, dois quartos de solidão, um terço de esperança, um ciclo de tristezas cruas, e quatro quartos inteiros de medos trancados que tive que encarar, sem querer e sem pensar...- outra pausa, e eu me perguntava o que a metáfora do coração de vidro roubado podia significar...- Se eu tinha meia chance com um coração transparente e lúcido, agora, sem nada nas mãos, sou eu mesma um nada, um vazio, e ocupo lugar de alguma lata de refrigerante que, mesmo vazia como eu, ainda pode ser reciclada.- prosseguiu Marília, fazendo cálculos condicionais, e, pelo estalido metálico que se seguiu à última frase, deduzi que ela esmagou uma latinha com o pé e depois a pegou. Falou a última frase que realmente me convenceu, era mesmo depressão.- Talvez esteja na hora de abrir as asas de corvo e subir aos céus pela outra saída.- e, em tom solene e frustrado, mas com certo teor de prazer, finalizou, assinando.- O beco, Marília Buonicelli.

Me aproximei, numa tentativa de chegar de leve, com a intenção de ser agradável; tinha a bolsa dela como pretexto e a poesia que, em mim, atuou como um calmante, para aliviar um pouco meus passos. Eu achava que ela estava tentando se re-equilibrar, mas logo ficou claro que, mesmo se essa fosse a intenção da poesia, o que, particularmente, coloco na forma interrogativa, não havia obtido o resultado desejado. Marília estava tremendo, enquanto se ameaçava com a parte mais pontiaguda de uma latinha de coca-cola amassada apontada para o pescoço. Sua expressão mostrava claramente que a razão emocional estava desafiando o instinto de auto-preservação. As mãos representavam por si toda a sua intimidade, a esquerda empurrava a latinha em direção à traquéia, a direita segurava a esquerda. Não me lembrava bem, mas eu estava torcendo para ela ser destra.

Eu sabia que agora eu precisava agir, mas, mais do que qualquer coisa, eu tinha que ser preciso; eu só tinha uma chance de dizer as palavras certas, afinal sendo ela uma escritora, a palavra valia alguma coisa pra nós dois. A pressão da escolha das melhores não era assim tão elevada, se comparada com a luta pra não agir por impulso. Acho que achei uma situação onde tudo o que fiz pra congelar as emoções, todo aquele treinamento pra me parecer com Pietro, tinha sido útil.

Analisando rapidamente tudo o que podia, percebi que ela não havia escolhido aquele lugar à toa. Ninguém escolhe absolutamente nada ao acaso, sempre tem alguma mensagem, algum estímulo, nem que for inconsciente que interfere no julgamento. Isso já era provado há tanto tempo, desde que começaram a fazer interpretação de sonhos. E aquilo me puxou, de alguma forma, a lembrança das aulas sobre pesadelos.

A própria circunstância me trouxe claramente a imagem de um pesadelo clássico. O ambiente representando o campo das emoções que influenciam nas ações. A poesia também me fez acreditar nisso, o beco não era apenas um local onde ninguém a incomodaria, era mais a manifestação física mais próxima do que ela estava sentindo. Mas por que o pescoço, não os pulsos? Beco, pescoço... Tinha alguma relação... Tinha que ter. Sufocamento. Ela estava se sentindo sufocada pelas emoções. Parecia cabível, mas não se encaixava totalmente. Foi, então, que meu subconsciente me trouxe à memória outra passagem do livro que Marília escreveu. Uma das reflexões de Pietro que tinha caído como uma luva para mim: “A sinceridade das palavras, minha amiga, nada significa diante das aparências dos atos, por isso tantas vezes eu menti, polpa um pouco de desilusão, sabe?” Ah, Pietro! Até hoje todo que você filosofava tinha mesmo razão de ser, mas agora tudo está em xeque... Bom, a noite ainda não acabou... Posso ter surpresas.

Marília agora está segurando a mão de Paulo, impedindo que ele entre e feche a porta. Creio que, depois dos pequenos gestos de carinho, Paulo decidiu entrar, julgando que a conversa já não levaria ninguém a nada, mas a escritora ainda tinha algo a dizer e eu reconheço o gesto que ela está fazendo, acariciando a própria face com a mão dele.

- Marília, trouxe sua bolsa...- falei em voz baixa, creio eu, naquele beco.- Olha, eu não sei se...- respirei fundo e medi bem as palavras.- Se você se lembra, mas há sete anos a gente teve uma boa conversa a respeito de um brilhante trabalho de sua autoria...

- Carlos, por que está me seguindo?- indagou ela em tom claro de quem se sente invadida.- O que você quer de mim?

Eu podia ter dito qualquer mentira que se prestasse a sair, mas tem horas que a franqueza é tão espontânea que, quando percebemos, ela já foi dita. Quando me vi falando verdades sem pensar nas consequências eu já sabia que o caminho estava se tornando perigoso. A primeira barreira tinha caído e eu teria que sustentar firme a segunda, a relação não poderia passar de psicólogo/paciente.

- Conversar com você e, quem sabe, depois ganhar um autógrafo.- disse eu olhando fixamente para o rosto dela.- Quero ter a chance de ajudar a criadora do Pietro que me ajudou tanto a passar por momentos difíceis. Marília, você me ajudou muito, Pietro é meu modelo mental...

-Você...- disse ela soltando a latinha e rindo.- Que pena! Sete anos e nada mudou... Continua com Pietro como mo...- e riu de novo.- Deixa pra lá!

- O que é tão engraçado?- estranhei aquele riso tão espontâneo vindo de alguém que estava em depressão profunda. Aquilo aguçou todos os meus pensamentos, afinal, nunca tinha visto ou lido, nem mesmo ouvido nada similar.

- Carlos, você é feliz?- perguntou ela com aquele olhar profundo expressando a tristeza que ela sentia.

Eu não soube o que dizer. Pensei em frases simplistas, mas... Ah! Qual a graça de mentir e ainda tentar a simplicidade? A conversa tinha ganho, de repente, algo a mais com essa pergunta direta e tentar desmerecer o que estava acontecendo com jargões populares, não sei por que, mas não fazia sentido. Era melhor continuar no tom íntimo, mas, é claro, sem perder as minhas próprias rédeas. Me surpreendeu tudo isso; quer dizer, ela mal me conhecia e já tinha tocado assim, sem mais nem menos, no único ponto fraco da minha orgulhosa rede defensiva. Era o ponto fraco por que não tinha um argumento sustentável a longo prazo. Felicidade estava longe de ser um medo, mas ninguém, desde que eu vivi meu processo de renascença pós-separação, tinha ousado me perguntar isso, tamanho foi meu distanciamento e minha reação de descrédito para com os relacionamentos humanos. Nem eu mesmo me permitia indagar se estou sendo feliz. Falando a verdade, a pergunta que eu mais me fiz durante sete anos foi “e agora Carlos, como você vai interpretar os fatos, que compõem a fina rede daquilo que se chama de realidade, para que eles não te machuquem de novo?” Pessoas costumam me perguntar por que sou arrogante, por que sou tão duro, tão sério... Letícia é que às vezes pergunta se está tudo bem e costumava se impressionar com minha reação inabalável. Sempre estou bem, mas se estou feliz é outra coisa!

- Sinceramente, eu não sei o que é felicidade há um bom tempo, Marília...- disse em tom reflexivo enquanto eu entregava a bolsa para dona pela terceira vez.- Mas talvez seja melhor assim, sempre bem, sem momentos de tristeza ou sofrimento. Tudo perfeitamente controlado...- Marília me olhou com um ar de repreensão, mas mesmo assim continuei.- Sabe, a vida foi me ensinando a ser forte e pra ser forte a gente tem que se conhecer muito bem, por que. no final das contas, tudo o que temos é nossa mente e ás vezes nem ela...- ela começou a chorar e pegou a bolsa da minha mão.- Mas, será que você pode me contar o que está acontecendo com você?

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Continua... No dia 28/1/12 às 15:00

Por favor, comentem o que acharam do capitulo de hoje!

Abraços, Ed

domingo, 22 de janeiro de 2012

Gênesis - 11º Capítulo

Agora já me parece meio que desespero mascarado de minha parte, mas eu já perdi as contas de quantas vezes já paguei o dobro, até o triplo, da hora de serviço de prostitutas só para conversar com elas. No começo, era trabalho para faculdade, sempre tirei as melhores notas com longos trabalhos que tratavam das resistências e aberturas psicológicas das pessoas à margem da sociedade. Claro que fazia o trabalho e ganhava a recompensa ao mesmo tempo, sexo como eu quisesse. Mas durante aquele quarto semestre de estudo eu descobri que eu não era assim tão diferente dessas pessoas, elas eram tão humanas quanto eu e o resto mundo, e, frequentemente, eu fui a essa avenida pagar pra conversar com alguém, sempre com uma diferente já que assim podia conhecer diferentes visões. Eu precisava disso, era como se eu fosse a um psicólogo pra desabafar, com as grandes diferenças de que uma prostituta não mexe intencionalmente com a mente, o que guardava a surpresa de não saber o que viria como benção ou maldição; além disso, nunca foi uma conversa solitária, era uma interação, elas sempre me contavam muito sobre elas, e, como se não fosse bom o suficiente, eu podia ter o alivio físico sem ter que me envolver emocionalmente. Era meu novo modelo de relação perfeita onde todos saíam satisfeitos!

Mas, estranho. Não consigo chegar ao fundo de por que isso me parece tão absurdo. Parece que, de repente, me caiu uma maçã na cabeça e minha ”Força G” recém-descoberta é que eu me orgulhava de uma mentira muito bem inventada. Sempre precisei de alguém pra conversar e, como tinha e ainda tenho medo do preço a se pagar por uma relação genuinamente humana, exatamente como Letícia tão sabiamente deduzira, me satisfazia em ter relações de algumas horas que eu pudesse controlar pelo valor contável do dinheiro... Eu não pagava prostituas, eu alugava réplicas de namoradas completas! E agora tento segurar a gargalhada pra não atrapalhar a conversa na porta da pensão. Nem preciso me preocupar em segurar tanto, pensando bem, pois acho que a menção do riso alto e desesperado parece desaparecer diante da mão de Paulo acariciando o rosto de Marília, parece que eles estão se entendendo, e meu sorriso não reflete bem a minha emoção. Estou contente pelos dois, mas... Espere, ela... Marília está passando a mão nos próprios olhos!? Ela está chorando e ele num último ato de carinho está enxugando as lágrimas dela... É parece que minha racionalidade me deixou, mas meu senso de observação ainda não!

Até esta noite tudo isso funcionava bem, a única pessoa que falava comigo sem cobrar nada era Letícia mesmo... E ela já tinha ido comigo fazer trabalhos deste ângulo suburbano. E mais, ela gostou! Mas, agora que conheço Marilia, as coisas estão mudando muito rápido. É como se nada do que fiz nesses sete anos fosse mesmo necessário. Já me parece que eu só precisava encontrar alguém como esta escritora, alguém que soubesse trocar uma vida inteira em poucas horas, como ela fez comigo.

Quando, depois de perguntar para algumas de minhas namoradas postiças, finalmente avistei, indo para um beco, o vestido longo, bem visível em meio ao ambiente de micro-saias, minha mente funcionava a mil, mas a correnteza de pensamentos indecisos estacava qualquer movimento. Eu não sabia se devia ou se podia ir até lá e, mesmo que quisesse ajudar, eu tive a clara sensação de não saber como me aproximar. Quarto ano de psicologia e tanto estudo não me ajudava em nada numa situação dessa? Não tinha sentido. Eu sempre tirei dez nas matérias que me punham face a face com pessoas estranhas; meu jeito arrogante de ser e minhas falas sempre lógicas e calculadas, me davam toda a cara de psicólogo forense, alguns colegas e muitos professores diziam que eu daria um bom investigador ou promotor tamanha era minha habilidade de sondar a mente de pessoas estranhas. Acho que o único professor que não me treina para esse ramo da psicologia criminal é o professor Sérgio. E acho que agora eu sei por quê. Eu tenho emoções!

E foi naquela hora que eu percebi que na verdade a minha maneira analítica estava prejudicando a tomada de decisão e decidi jogar tudo pro alto, agir por improviso pra variar... Eu não tinha tempo para planos. Diria qualquer coisa que me viesse à mente. Naquela situação, só uma coisa importava, chegar até Marília e impedir que ela cortasse os pulsos ou tentasse qualquer outro método para o mesmo fim, depois eu teria tempo pra revirar a mente dela para poder ajudá-la. Eu devia isso à autora daquele livro que eu lia todo dia para não perder o controle de mim mesmo. E, passo a passo, minhas emoções queriam me levar mais rápido e os pensamentos queriam achar algo pra dizer, acreditando que ela não seria capaz de fazer nada de tão sério contra si mesma. Ponto para a racionalidade!

Me aproximei daquele beco de olhos fechados. A única coisa que me vinha à mente era: “Marília, meu autógrafo!” E esperava que ela abrisse um sorriso, mas, claro, que, naquela situação, pareceria muito mais uma pancada que um carinho para a grande maioria das pessoas. E, de tanto pensar, acabei me lembrando de uma frase de Pietro que tinha influenciado muito na minha decisão de fazer psicologia. “Ouvir o mundo pessoas antes de agir é uma arte que o tempo desenvolve nos poucos corações que se deixam aprender a paciência, não é mesmo, minha amiga?”. Me lembro vagamente do contexto em que a frase foi escrita no livro da escritora que, então, precisava de ajuda. Fico admirado. Nunca uma frase de romance psicológico caiu tão bem a uma situação real! Mas, claro, tem explicação. Meu subconsciente estava buscando algo comum entre ela e eu que se encaixasse na relação de psicólogo/paciente, para que eu pudesse trabalhar a depressão dela.

Marília sempre me surpreendeu, desde a primeira leitura do livro ao encontro no beco da parte baixa de uma avenida famosa. Ela estava fazendo performance poética para as paredes. Além de escritora, ainda é atriz! Cada pessoa tem sua reação a um choque, não me é espantoso que uma escritora como ela tente a poesia como a primeira porta para se recuperar de um, é natural... Parei de andar no meio da multidão e tentei aguçar a audição ao máximo para entender na voz conturbada de Marília as nuanças dos tons.

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Continua... No dia 25/1/12 às 15:00

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Abraços, Ed

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Tá é clássico, mas vale a pena ler!


A Diferença
Edgar Izarelli de Oliveira

Encantar-se é enxergar rara beleza no que nos oferece apenas a incerteza
Disposta numa salva de prata de pequenas identidades misteriosas
Espelhadas nos olhos, gestos e sorrisos, no jeito de falar, no assunto e no desfecho.
É conhecer, de repente, partes da gente em outro mundo simétrico e diferente,
E admirar o rápido fluxo da dimensão temporal de se estar naquela companhia;
E, confundindo admiração com alegria, concordar com a destreza sinistra do presente
Que parece se anunciar em qualquer frase gentil dita no subjuntivo dos equívocos.
E, mesmo sabendo que é um erro, dar-se o benefício da dúvida que não nega nem firma,
Se permitindo ponderar penas e contra-sensos habituais aos medos de um reflexo,
E tentar, assim, equilibrar o peso das madrugadas velozes com a leveza dos sonhos,
Só pra saber se a ilusão vale a realidade ou se é no IN-verso que está a verdade,
A prova de quanto é passageira a inspiração fornecida através deste pseudo-insight.

Apaixonar-se é assumir riscos ignorando as consequências e as contradições;
É entregar-se sem pensar e precisar se perder cada vez mais num outro mundo
Que pode ser um corpo amistoso ou território enigmático, campo-minado,
Tumba de segredos ou cidade destruída por bombardeios consecutivos.
Apaixonar-se é se atirar cegamente e se viciar na arma química do desconhecido,
E, depois, virar muitas noites em coro de raivas, fazer uma dolorosa desintoxicação,
Mas acordar com a marca sorridente da esperança rubra de ter marcado o suficiente...
Apaixonar-se é mesmo aproximar-se e diluir fronteiras existenciais em poesias intensas
E ter medo de perder a mescla labiríntica das necessidades de reconhecimento,
Envolvendo-se numa trama confusa de sentidos flácidos que logo caem em desuso.
É sorrir para o medo e dizer arrogantemente covarde que ele não existe.

Mas amar, amar é superar-se e ir além, amar é fazer a diferença; é escrever romances!
Amar é amar-se antes, e querer tão bem, por querer mesmo, a presença do outro
Que se prefere dar a liberdade e assegurar confiante o porto seguro de seus abraços.
Amar o outro não significa abnegar-se, mas, sim, ter auto-estima em alta
Pra poder caminhar de mãos dadas formando um elo de estradas e pensamentos.
Amar é poder abrigar outro mundo inteiro dentro de si durante as tempestades,
É ser pilar forte que sustenta a cabana em pé perante os piores terremotos,
É ser farol e estrela-guia nas ondas apaixonadas de qualquer maremoto,
É estar sempre presente para assumir os medos, as ansiedades e as afirmações;
E, por pior que tudo possa parecer, amar é ter com quem contar pra enfrentar
O resto anônimo dos traumas psicológicos e das prisões que a vida erguer adiante.

E com essa diferença básica, quase que tão clássica quanto Shakespeare e Camões,
Agora tenho em mãos a poesia que te oferece e garante meu amor mais íntegro,
Pois, para te amar não preciso nem quero perder a poesia de encantos e paixões!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Gênesis - 10º Capítulo


Ela estava presa no seu mundo particular, alheia a tudo. O sofrimento era evidente. “O próximo ponto será o último”? Não. Eu me espantei quando percebi que aquilo não era metáfora. A próxima parada do ônibus era numa avenida muito movimentada da cidade onde havia prostitutas e drogados. Ela ia se render à realidade como eu fiz, mas apontador? O local movimentado e real de repente me pareceu disfarce. Ela pretendia se cortar com a lâmina do apontador!

Olhei pela janela, por sorte o transito estava carregado, mas mesmo assim já estávamos perto do ponto. Eu tentava me lembrar o que me disseram quando eu tentei me matar. Felícia me dizendo que não ia voltar comigo, eu sem entender por que, sem entender o que tinha feito. Eu quis morrer mesmo, a vida sem ela não fazia sentido nenhum. Foram tempos difíceis. Fico pensando o que seria de mim sem Marília e a resposta que hoje me assusta e me parece sem sentido, na época era a melhor senão a única solução plausível. Aquelas três semanas esquecidas começaram a ser relembradas devagar.

Marília está gesticulando muito, mas fala baixo. Daqui me parece que Paulo está indiferente, quase a ignorando. Tenho vontade de ir até lá e fazê-lo entender, nem que precise usar a força bruta, que o amor de Marilia é bem maior que aquele incidente e, ao fazer o que ele está fazendo, ele está diminuindo toda uma história a um misero pedacinho de matéria. Ela tentou proteger o amor de vocês. Talvez de maneira errada, mas e a intenção, onde fica? Umas lágrimas estranhas estão rolando nas minhas faces. A compaixão já havia se implantado no meu coração de maneira definitiva, mas eu não faço parte dessa história e não tenho a coragem nem o direito de interferir diretamente.

É! Minhas impulsividades estão mesmo tentando insurgir, mas por enquanto a barreira criada a partir de tanto empenho ainda contém a revolução sentimental calada e inexpressiva a quem me olha de fora. No entanto, eu já não posso mais me esconder de mim e também não chego a compreender o que estou sentindo. É mais que um senso elevado de justiça, é mais que raiva acumulada durante anos e na certa é mais que compaixão... Marília é uma mulher excepcional e me é impossível não rir de mim mesmo quando me vejo percebendo que eu quero ir até lá tirá-la dali, daquele mundo quebrado, e trazê-la bem apertada nos meus braços. Quero protegê-la, mas, infelizmente, o melhor jeito de fazer isso é deixar a conversa prosseguir mais um pouco. Tenho certeza, isso não é compaixão...

Compaixão eu senti quando eu desci do ônibus atrás dela que, ao sair, ainda teve de se recolher mais ainda atrás de suas faces coradas, tentando ainda se proteger de uma intervenção maldosa que veio lá do último banco: “A ingrata vai descer e já vai tarde. Onde já se viu, Meu Deus... Dar um tapa em quem te salvou a vida!” Disse a nossa locutora rodoviária e Marília saiu tropeçando pelos degraus.

Se até então eu ainda ponderava se ia atrás dela, naquele instante me levantei sem dúvidas apanhei minha mochila e a bolsa de Marília, lancei um olhar fumegante de repreensão àquela mulher implicante e pedi educadamente ao motorista, que já estava acelerando o veículo, para abrir a porta porque eu precisava entregar a bolsa da moça. Ainda que de má vontade, ele abriu e eu saí correndo... Eu já sabia que o caso era grave e torcia para que não fosse tão grave quanto eu estava percebendo. Depressão tem níveis. Me lembro bem desta aula...

Depressão profunda é muito grave. Causa, entre outras coisas, perda de prazer nas atividades; retraimento social; pode, embora mais raro, se apresentar com aumento de apetite; e até idéias suicidas. O escrito a respeito do último ponto, as embalagens vazias de chocolate, fonte de estimulo para o neurotransmissor do prazer; o tapa no rapaz que a ajudou e o desespero... Era depressão profunda e eu sei o quanto isso é horrível de se sentir. Eu me tratei com auto-medicação e auto-reorganização sentimental, mas o certo era ter procurado ajuda profissional. Talvez por isso, até ainda há pouco, eu ainda estava perdido...

Aquela avenida era movimentada por natureza, mas me pareceu muito mais carregada nesta tarde, não sei se por causa do horário ou da pressa. Acho que os dois. Tinham se passado apenas alguns segundos; suficientes só para uns quinze passos, no máximo, mas eu já não conseguia ver Marília na multidão.

A avenida lotada de homens procurando fisicamente por prostitutas gostosas e jovens comprando e usando drogas de todos os tipos me assustou. Não sei por quê. Eu mesmo já havia explorado aquele chamado “submundo” inúmeras vezes.
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Abraços, Ed

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Gênesis - 9º Capítulo

- Não!- ela me olhou nos olhos e deixou a bolsa cair no chão.- Isso já não vale nada! Toda essa vida foi roubada de mim e isso, tudo isso é apenas matéria morta.- os olhos dela se moveram de maneira estranha e conhecida ao reagir ao meu olhar já mais convidativo a uma conversa.- Carlos, né? Essa escritora nunca mais será a mesma, se é que ainda sobrará alguma mulher...- e ela voltou ao esconderijo de suas mãos.

Era depressão. Ela não valorizava nada mais do que possuía. Mais que isso, era crise existencial. Um daqueles momentos em que não ser nada parece melhor do que ser o que se foi ou o que se é. Eu não me lembrava mais o que é desvalorizar matéria por um ideal. Mas, meu nome, como ela sabia? Ela me conhecia, mas de onde? Eu não a reconheci imediatamente. Minha mente gastou algum tempo se sondando, tentando achar aquela mulher em algum lugar no tempo. Eu não me lembrava dela, mas também não me era uma pessoa tão estranha assim. Marília, agora as lembranças são claras como água e já não sei mais o que tudo isso significa.

Um homem de cabelo comprido e cavanhaque bem feito, vestido com um roupão branco abre a porta da pequena casa e, com um sorriso forçado e verdadeiro ao mesmo tempo, cumprimenta Marília com um beijo suave e distante na face, parecendo surpreso em vê-la. Ele lança um olhar desconfiado a mim, Marília o abraça bem forte e faz um carinho em seu rosto, ele fala alguma coisa e se solta rapidamente dos braços carinhosos daquela mulher, assim eles começam a conversar. Então esse é o Paulo...

Minha mente volta ao ônibus, à minha epifania. Escritora? Eu não conhecia nenhuma escritora exceto a autora daquele fantástico romance psicológico que iniciou a minha saída da depressão que perdurou por seis meses após Felícia ter me deixado. O livro mostrava um personagem puramente racional, um psicopata, que conseguia tudo o que queria. Hoje sei que na verdade ele não era psicopata já que, durante todo o romance, apesar de manipular muito bem todas as pessoas ao seu redor, não matou ninguém, mesmo quando isso era a melhor opção. Ele sempre dava um jeito de preservar a vida e afastar o antagonista, que era seu irmão, um sentimental que sempre botava a perder as conquistas da família por ter atitudes viciosas. Esse livro era assinado por Marília Buonicelli.

Eu havia comprado o livro junto com outros tantos que me chamaram a atenção numa bienal, um dia antes de conhecer Felícia e ela tomar pra si todos os momentos vagos ou não, da minha vida. Seis meses e três semanas depois, eu estava diante do dilema: o que fazer com tanto tempo livre? Me foi sugerido que fizesse o que queria fazer antes da minha namorada mudar tudo, mas eu não lembrava de quem era eu antes dela. Precisava de uma nova identidade e acabei assumindo como certa grande parte da personalidade do personagem criado por Marília. Demorou muito tempo até me parecer de verdade com o tal do Pietro, mas consegui.

No fim do outono daquele ano, a escritora esteve numa noite de autógrafos em minha cidade e eu estive lá para prestigiá-la. Sua obra havia me ensinado como não sofrer mais por males emocionais. Eu precisava agradecer a autora que, se não me falha a memória, não se parecia nem um pouco com aquela mulher ao meu lado no ônibus. É engraçado lembrar, mas conheci Marília na sacada daquele centro cultural, sem saber que era ela. Conversamos um pouco sobre a obra e ela pareceu espantada ao ver a minha interpretação, eu era tão novo e já tinha o coração quebrado em milhões de pedaços. Ela, depois de cinco minutos, pegou uma caneta e escreveu num marca-páginas do evento, o número do seu celular com seu nome ao lado, me disse pra ligar para ela dali a alguns anos e foi andando para dentro da multidão. Quando eu vi o nome dela pedi um autógrafo e ela me respondeu que quando me encontrasse de novo me daria o autógrafo. Fiquei olhando ela, uma mulher alguns poucos anos mais velha que eu, linda e talentosa. Não ia esperar alguns anos pra ligar, apesar de ter entendido que ela queria dizer para que eu amadurecesse um pouco mais as minhas idéias. Nessa época eu envelhecia mais rápido, a depressão me cobrava respostas e eu corria atrás delas. Posso ter sofrido muito, mas foi a época que mais cresci intelectualmente.

Uma semana depois liguei pra ela, tentei umas quarenta vezes querendo continuar a conversa sobre literatura, mas ela não atendeu. Talvez por isso eu tenha bloqueado a memória, eu ainda não era racional e isso tinha me machucado um pouco.

No ônibus, eu tinha apenas uma vaga lembrança; algo que parecia se assemelhar a uma vida que eu já havia perdido. Vida passada? Não podia ser. Eu apenas supunha ser Marília por que era a única escritora viva de quem tenho livros na estante. Mas precisava ter certeza que era ela que estava ali, chorando. De repente me lembrei de uma cena similar do livro que ela tinha escrito. Não se passava num ônibus, mas duas pessoas se encontravam depois de muito tempo. O encontro foi obra do acaso e, como a literatura permite certa fantasia, as duas começam a conversar sem se lembrarem uma da outra. Se não me engano, é a cena de abertura do livro.

- “Hey, como vai o coração?”- disse eu, com um tom de cantada, tentando encenar a primeira fala do livro com naturalidade e simpatia, mas estava tudo enferrujado dentro de mim.

Ela olhou pro lado com cara de espanto. Senti que ela estava pronta para me dizer algum palavrão e me dar um tapa, mas ela olhou bem no fundo dos meus olhos com aqueles olhos que começaram a se mexer e brilhar, sorriu e moveu os olhos para o canto superior esquerdo, tentando se lembrar de alguma coisa, depois olhou para minhas mãos.

- “Meu coração? Foi roubado pela realidade já há algum tempo.”- disse ela num tom de lamentação e, olhando vagamente para a porta do ônibus, voltou a chorar.

Era a frase que eu queria ouvir, a segunda fala do livro, que, tirando o choro, tinha sido encenada exatamente como eu a imaginava. Ela, a mulher do ônibus, era mesmo Marília Buonicelli, ou alguém que decorou o livro... Só podia ser a autora do livro que tanto me havia ajudado; por isso, minha mente sentia tanta necessidade de ajudá-la. Era retribuição. Eu não podia crer, e ainda acho que estou meio alucinado pela conversa com minha amiga esta tarde. Sete anos depois... Pena que ela estava assim tão triste. Ainda não era compaixão, mas era algo mais que humanidade. Eu precisava ajudar Marília. Tentei me lembrar da continuação do dialogo do livro.

- Está mesmo acontecendo isso?- murmurou ela, falando consigo mesma e se arranhando nos braços.- Nunca imaginei que um dia seria verdade. Um coração roubado...- ela riu com ironia.- Pra que viver sem coração? Eu perdi tudo... A última esperança me foi roubada por um mendigo, nada mais real...- suspirou, pegou a bolsa e tirou dela o estojo e o caderno, abriu o estojo devagar, pegou uma caneta, abriu o caderno na ultima folha e começou a escrever.- E a última página de uma vida tão feliz mostra palavras tristes, sem vida. A proteção falhou, a mentira acabou e isso talvez seja bom...- ela falava o que escrevia numa voz de choro.- Lágrimas rolam, e agora? Continuar viva? Tenho um apontador, mas o lápis finalmente acabou. A caneta sem tinta cospe ainda uma gota de sangue negro da minha vida. O próximo ponto será o final.- ela voltou a chorar desesperadamente.

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Abraços, Ed

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Gênesis - 8º Capítulo

- O ladrão era mendigo, eu acho; estava vestindo roupas velhas e rasgadas.- me contou o motorista.- Estava armado com um canivete que apontava para o peito da moça. Ela estava tirando um pequeno envelope de papel da bolsa que o mendigo tentava tomar dela. Foi ai que o rapaz apareceu atrás do mendigo e tomou a faca dele com um daqueles golpes de karatê, sabe... Só que, no susto, ela deixou a bolsa e o envelope caírem no chão, o rapaz conseguiu pegar a bolsa, mas o envelope o mendigo levou... Ela ficou desesperada, brigou com o rapaz, depois começou a chorar e a gente trouxe ela pra dentro.

Agradeci as informações e, quase imediatamente, comecei a processá-las, voltando a me sentar no meu lugar.

Para com isso! Não tinha heroísmo nenhum nas ações daquele rapaz. O mendigo devia estar morto de fome, roubando pra sobreviver, já que quase ninguém dá esmola hoje em dia. Uma faca? Se fosse um revolver ainda teria certa valentia, mesmo sendo covarde atacar pelas costas. E ainda desarmar com técnica de artes marciais? Posso ser leigo nesse assunto, mas não a ponto de não saber que desarme com as mãos nuas é técnica avançada. Entrar numa briga sabendo que vai ganhar é vaidade, não heroísmo. Eu pensei tudo isso naquela hora. Agora, revendo a situação, talvez o heróico seja saber usar o conhecimento para proteger um desconhecido e manter o controle sob pressão; mas ainda acho que a vaidade foi maior. Ainda mais sabendo o outro lado da história...

Eu quis levantar e mostrar a todos o que havia por trás da máscara daquele jovem, mas, quando olhei para a moça chorando ao meu lado, me pareceu muito mais lógico ajudar ela do que destruir um momento de vaidades inglórias.

Marília acaba de tocar a campainha da pequena casa mais uma vez, suas mãos ainda trêmulas me lembram a expressão de desespero que eu quis socorrer. Ela não parava de chorar. E, quanto mais ela chorava, mais eu queria poder amenizar a dor para poder conversar com ela, eu ainda não fazia idéia de quem era a mulher ao meu lado. Demorei alguns minutos pensando no que poderia acalmá-la sem invadir aquele choro sincero que eu estava abismado em ver. Era um choro puro... Desesperado, sim, mas de coração... Um choro que eu já tinha perdido e considerava extinto da humanidade e, talvez, por isso mesmo, me fazia crer em pequenas coisas antigas.

Me lembrei que Felícia sempre escondia as coisas o máximo que podia pra não me magoar, e eu brigava com ela quando percebia que ela estava triste comigo. Hoje sei que aquele era o jeito dela proteger algo que valia a pena, mas sempre achei um erro esconder as emoções, porque, na minha cabeça, situações que nos machucam tendem a se repetir se não fizermos o causador saber que nos fere. Ela escondeu nosso namoro dos pais, escondeu tristezas; queria viver de alegrias. E quem não quer? A idéia de que as coisas se completam eu nunca consegui explicar a ela, mas ela exigia sempre a minha sinceridade. Não me era problema algum ser verdadeiro, até o dia em que contei pra ela uma coisa séria que estava acontecendo... E ela decidiu terminar comigo.

Naquela época em que estávamos juntos, eu escrevia poesia e pintava alguns quadros, adorava tirar fotos e minha vida era a flauta mágica... Hoje a arte é parte do passado. Minha região lírica nunca voltou a funcionar como artística e tive que dar-lhe outra função, a da mentira.

Considerei mil maneiras de me aproximar de Marília no ônibus, de conhecer as razões daquelas lágrimas; mas nenhuma me pareceu boa e segura o bastante. Não queria piorar as coisas, o que, de certa maneira, bloqueava qualquer uma de minhas ações incisivas e persuasivas. Um abraço, um pergunta filosófica, um discurso sobre o medo de se viver numa cidade grande. Eu era um estranho e qualquer ato estranho de um estranho a faria se sentir mais assustada, mas qualquer pessoa seria estranha para ela naquele momento. Ela tinha sido assaltada por um estranho, supostamente salva, e sua reação provava que tinha sido condenada, por outro estranho; quer dizer, o que a faria imaginar que um terceiro desconhecido quisesse ajudá-la? Um gesto carinhoso e ela pensaria ser um tarado tentando se aproveitar de sua fraqueza. E se, por outro lado, o carinho a fizesse sorrir e ver que tinha alguém preocupado com ela, essa não era a minha intenção. Eu queria que ela falasse sobre o que estava sentindo, falasse sobre a dor e me contasse sua versão do assalto.

Peguei sua bolsa, estava aberta. Averigüei o interior, sem que ela percebesse. Celular; carteira; estojo; três livros-de-bolso; dois pen-drives; batom; espelho portátil; contas do serviço público; chaves de algumas portas e de um carro; brincos; uma pulseira; preservativos; pílulas anticoncepcionais e anti-gripais; lenços-de-papel molhados e uma caixa destes, provavelmente vazia; embalagens vazias de chocolate e um pequeno caderno. Estava tudo ali e eu misturei muitas dúvidas aos objetos. Me perguntava, sem parar, coisas que não faziam sentido: O que fora roubado de tão importante pra ela estar chorando assim? Se ela tem carro porque pegar ônibus? Chocolate, lenços molhados, pílulas anti-gripais... Está em TPM, gripada ou deprimida?

- Moça, sua bolsa.- disse eu lhe entregando o objeto.- Me perdoe, mas tomei a liberdade de verificar se faltava algo de valor.- ela pegou a bolsa balançando a cabeça baixa negativamente entre soluços.- Bem... Parece que está tudo ai e...- parei a frase em surpresa.
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Continua... No dia 16/1/12 às 15:00

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Abraços, Ed

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Gênesis - 7º Capítulo

Passaram alguns segundos e ouvi alguns gritos de várias vozes misturadas, vi o motorista do ônibus descer e parar na frente da porta, bloqueando a passagem com seu corpo robusto; tirei os fones de ouvido e a noticia chegou lá de trás, vinda na voz de uma moça preocupada. “Meu Deus! Um assalto!”. Olhei em volta, o pavor da grande metrópole já tinha se espalhado no rosto da maioria... A mulher do fundo anunciou: “Cruzes! Aquele cara é louco... Está enfrentando o assaltante. Meu Senhor do Bom Fim, não quero ver!”. Não escutei mais nada dentro do ônibus durante algum momento de tensão, na certa todos tinham virado a cara para não ver a tragédia. As vozes lá de fora gritavam: “Cuide dela!”, “Deixe o ladrão ir!”, “Ele já está desarmado!”... De repente, a mulher do fundo exclama: “Meu Deus! Ele é um anjo! Um herói!”... E, de lá de fora, um grito de socorro cortou os aplausos do heroísmo, o grito foi desumano, mas deu para reconhecer que a voz era de uma mulher jovem “NÃO!!! Volta aqui com isso! Não tem valor nenhum para você!”, dizia ela, claramente se dirigindo ao ladrão. Escutei um tapa seguido deu um diálogo... Aterrador para a maioria...

- Por sua culpa eu perdi a coisa mais valiosa desse mundo!- disse a mulher chorando muito.- Eu tinha um trato com aquele bandido...

- Desculpa se aquele pedacinho de papel era mais importante que sua vida ou que a vida de todos aqui.- disse um homem calmamente.- E desculpa se arrisquei minha vida pra proteger pessoas estranhas.

- Obrigada...- disse a mulher após alguns soluços.

- Meu Pai do Céu!- gritou janela a fora a moça do fundo, completamente abismada.- Rogai por essas almas mal-agradecidas, Senhor!

- Rogai, Senhor.- falei comigo mesmo em tom de sarcasmo.- Rogai por essa alma precipitada.

Emoções colocam em primeiro lugar aquilo que mais interessa no momento, não o que é mais importante ou valioso a longo prazo. Isso funciona tanto para heróis quanto para loucos. Ora, revendo essa memória me parece que todo heroísmo é loucura, só que, por salvar alguém, é uma loucura digna de aplausos. Mas o engraçado é que emoções muito fortes sempre tentam salvar algo de valor, a sua própria existência, a existência de quem a sente, a existência de um outro ser, a existência de uma relação... Por que só o auto-sacrifício é ato heróico e, mesmo assim, só quando o sacrifício é coroado com a vitória? E eu me orgulhava de ser racional! Marília mesmo antes de entrar no ônibus já estava me trazendo tudo isso, que só agora consegui organizar em um pensamento aceitável...

Passaram alguns segundos e ela apareceu na porta do ônibus entre os dois homens. Acho que o motorista convenceu o restante do povo do ponto a não embarcar, mas devo considerar a hipótese de solidariedade espontânea em massa, apesar de mais difícil de crer, mas não impossível diante dos fatos. O motorista subiu acompanhado por uma jovem mulher de vestido de flores violetas e expressão desesperada; escondendo as faces nas mãos e chorando inconsolavelmente, certamente a vítima do assalto, que vinha meio que conduzida pelo homem que tinha acabado de deixar o transporte público. Ele a guiou até o banco de onde se levantara e a sentou ali, ao meu lado, e entregou a ela a bolsa que tinha nas mãos e, como ela o ignorasse, ele entregou a bolsa a mim. Ao menos era cavalheiro. Eu achei que ele fosse sentar e deixá-la em pé...

Ele, como não era surpresa nem a mim nem a ninguém, foi recebido com uma grande salva de palmas que o aclamava o grande herói daquela hora, todos os estranhos foram até ele e lhe deram os parabéns pelo ato de bravura, enquanto ele sorria e dizia que qualquer um em sua condição teria feito a mesma coisa. Somente duas pessoas não o aplaudiram: eu, que detesto hipocrisias de qualquer tipo e acho bem piores as sociais, e a mulher que eu ainda não tinha reconhecido, mas estava ali, chorando e soluçando ao meu lado. Eu parei para apenas observar. Ela estava chorando e ninguém notava, estavam todos preocupados em engrandecer o herói vencedor, mas à heroína que parecia ter perdido muito mais que um minuto de sanidade individualista por uma vida próxima, ninguém era capaz de dirigir uma palavra amiga. E pela primeira vez em anos, eu queria ajudar alguém sem pensar em receber algo em beneficio próprio. Não era compaixão ainda, mas era humanidade e, naquele instante, eu lembrei do abraço de Letícia.

Olhei para o homem. Ele era forte, porte atlético, cabelos curtos, pele morena. Observando bem atentamente, pude perceber algumas coisas fora do lugar. Suas roupas não aparentavam sinal algum de briga. Nenhuma mancha de sangue nem qualquer sujeira ou amassado que mostrasse que ele caiu no chão, nada. Tudo no devido lugar. Achei estranho, muito estranho.

Tão estranho que fiz uma coisa que geralmente não faria, perguntar o que tinha acontecido. A única questão era pra quem perguntar. A jovem mulher ainda estava em choque e rejeitaria qualquer aproximação, a mulher dos fundos iria engrandecer muito a façanha do herói e não contaria a parte importante com detalhes. Pensei em perguntar a ele, mas seria a pior da escolhas por que ai eu teria três hipóteses, no mínimo... Ou ele tinha realmente agido por coragem e, nesse caso, sua mente poderia ou não se lembrar das coisas como foram exatamente. Por outro lado, se ele não havia feito nada por bravura, poderia mentir e aumentar os detalhes para que se parecesse mais heróico, ou podia até dizer a verdade, mas, querendo defender seu momento de glória, seria arrogante, e ai eu teria que pegar outra versão; então fui direto à prova dos nove, o motorista. Levantei, abaixei o volume da música e fui falar com ele, quando o ônibus parou num semáforo.
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Continua... No dia 13/1/12 às 15:00

Por favor, comentem o que acharam do capitulo de hoje!

Abraços, Ed