EdLua.Artes

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sábado, 28 de janeiro de 2012

Gênesis - 13º Capítulo

Ela me olhou profundamente, como quem deseja se sentir seguramente confortável antes de falar qualquer coisa. Depois de alguns segundos, seu olhar mudou para uma expressão de quem diz que será uma longa história. Eu a olhei por inteiro tentando prestar atenção aos mínimos gestos. Ela segurava a bolsa na frente do corpo numa postura reflexiva, mas a expressão de sua face estava aberta, apesar das lágrimas que manchavam sua maquiagem. Maquiagem que só naquele instante eu tinha notado. Ela me olhava nos olhos e eu sabia que tinha que falar alguma coisa, mas a atmosfera criada entre nós era tão intensa e de isolamento que, mesmo sobre o efeito daquele olhar que me sondava e se sondava junto, não tinha palavras pra tentar uma aproximação. Ela então, olhou para a bolsa e tive a impressão de que ela estava se distanciando. Tenho a lembrança de ter dito algo sobre a bolsa, não me lembro o quê, mas só pode ter sido isso por que não imagino que outra coisa poderia ter gerado aquela resposta...

- Por que você é assim, tão materialista?- contestou Marília erguendo rispidamente a cabeça com um olhar incisivo.

- Porque, no fim das contas, tudo o que temos nesse mundo é nossa mente e aquilo que conseguimos por nós mesmos!- retruquei acentuadamente e ainda continuei como se eu acreditasse mesmo nisso. Bom, naquela hora eu ainda acreditava, mas agora eu mesmo me contesto sem saber exatamente no que acreditar.- Você só pode pesar coisas concretas. As emoções e sentimentos, por mais fortes que sejam, um dia se desfazem, os vínculos entre as pessoas sempre se quebram! E aí sobra só o que nós temos de concreto! O resto é vazio e sem sentido. E o que nós temos como certo é só aquilo que conquistamos, nossa vida e a certeza da morte!

- Você está errado, tem que estar...- disse Marília abaixando o olhar.- Não. Tem pequenas coisas que não têm preço, não há valor que recompense a perda dessas coisas. Eu sei por que acabo de perder algo muito importante. Você diz que tudo que tem valor ainda está aqui na minha bolsa, mas falta um pequeno pedaço de cristal que resumia grande parte da minha vida.- e chorou tentando expressar uma parte importante dela pra que eu pudesse ver mais de perto.- Não tem nada especial na sua vida? Você nunca ganhou algo que guardou com carinho porque significa algo relevante, mesmo que seja uma besteira, um bilhete, um origami... Enfim, algo que te faça chorar?

- Espera aí! Tà me dizendo que você ta chorando por uma pedrinha barata???- disse surpreso e depois de alguns segundos, continuei.- Um bilhete? Uma dobradura de papel? Entendo que pessoas chorem quando perdem algo de valor, uma casa, um carro, um celular com os telefones das pessoas queridas...- eu tinha esquecido completamente dessa carta num envelope rosa; naquele instante talvez eu só quisesse entender o que estava acontecendo nessa noite incomum de outono, durante a qual não só as folhas e flores dos ipês, mas os sentidos que montei com todo o cuidado pareciam cair como resultado de uma brisa qualquer.- Mas chorar por um pedaço de vidro...

- Não...- disse me olhando nos olhos, a escritora, sem nem fazer a mínima força pra tentar conter ou disfarçar os soluços e as lágrimas.- Era uma jóia falsa em formato de coração... Não... Não é pela jóia que eu choro, é pelo resto... Todo o resto, as últimas esperanças... Minhas últimas esperanças e sonhos passavam por aquela pedrinha de brilhante e pela carta... A carta, Meu Deus... Eu tinha escrito com o coração... Tinha... Eu tinha colocado tudo que eu precisava dizer naquele pedaço de papel, cada gotinha de sentimento... E foi tudo roubado, tudo!... Até a boa-ação que queria fazer pra compensar meus pecados... Até isso me foi roubado! Roubado!!... Aquele homem, coitado!... Não vai conseguir comprar nem pão... Nem pra dois dias!!... Aquele cristal deve valer uns dois ou três reais... Mas valia o mundo inteiro pra mim...- e depois da declaração cortada e incompleta, Marília se entregou ao choro e se isolou nele. Não importava o que eu fizesse ou falasse, ela continuava chorando...

Marília continua tentando fazer Paulo reagir, mas ele parece cada vez mais convencido de que a decisão dele está certa e demonstra claramente o desinteresse marcado pelo olhar totalmente vago, lançado ao horizonte, a postura fechada. Os braços cruzados e a acomodação de estar encostado de lado no batente da porta, dão a nítida impressão de que ele nem está ouvindo a pessoa que por anos dividiu tudo com ele. Parece que ele está ouvindo uma música bem alta num fone de ouvido. Só deve permanecer ali por algum respeito.

Felícia sempre me escutou. Meus olhos agora exibem algumas lágrimas também, acho que não aguentaram a curiosidade e leram a carta amassada de sete anos atrás. Mas não sei definir o que estou sentindo agora, só sei que não é amor, ou talvez só agora seja amor de verdade, sei lá... Fato é que minhas emoções afloraram de vez... Depois de sete anos mantendo a esperança lacrada num envelope, poder ler algo assim mexe com qualquer um, embora de maneiras diferentes...

“Carlos meu anjo, você devia estar preparado pra tudo sei que ninguém pode prever uma separação mas sei lá... parece que você ta forçando demais a barra... você sabe que nada do que você está fazendo vai me levar de volta pra você! Tudo o que você tem me dito, amor, não ta mais fazendo sentido nenhum... Eu confesso que me senti traída quando você me disse aquilo mas já passou eu sei o que você sente por mim só não sei se posso voltar e corresponder como era antes apesar de ainda te amar muito... na verdade eu já tinha percebido que nosso relacionamento já estava enfraquecendo eu já tava fraca você ainda veio falar aquilo tudo... Mas se é tão importante assim pra você... Vem conversar comigo, vamos tentar fazer do seu jeito... eu também preciso de algumas certezas que só terei com você então vem, mas por favor vem sem planos, nenhum de nós dois sabe realmente o que vai rolar e se te conheço bem você vai demorar algumas semanas pra me procurar, vou esperar você me ligar. não vai ser igual mas pode ser melhor como você disse... e se não for mesmo assim acho que temos mesmo que conversar olhando nos olhos como sempre fizemos e resolver isso de uma vez... beijos com carinho Felícia”

Poxa! Ta, legal... Confesso que não esperava assim tanta disposição... Ela tinha decidido me dar mais uma chance, a chance que eu tanto implorei! Felícia... Eu vivi sete anos numa esperança que podia ser real... Sete anos! É engraçado! Na verdade, não sei se é isso mesmo que me faz rir... Não sei se é engraçado, ridículo ou patético, mas sei que para quem me olha de fora devo estar parecendo feliz, devo estar rindo... Não é desespero, mas me sinto desnorteado... Quantas mil vezes eu tive vontade de ler essa carta, mas resisti racionalizando que tudo tinha acabado e armando defesas atrás de defesas???... Quanto tempo perdido, quanta vida perdida! Uma carta que não tive a hombridade de ler! Se eu tivesse lido antes até teria procurado pela dona daquela caligrafia irregular e meio quebradiça, mas feita com a caneta forçada no papel... Determinada ela sempre foi, pena que era orgulhosa demais e de temperamento inconstante...

Mas o engraçado é que sempre pensei que quando lesse essa carta me sentiria triste, mas acho que todo o meu esforço pra aprender a não me deixar levar não foi de todo em vão, pois, embora eu esteja lembrando de tudo que vivi com Felícia, sinto apenas saudade, não amor. Se me fosse permitido acho que iria procurá-la só para dar um abraço e deixaria o resto da vida acontecer, mas... Sete anos não são sete meses... Ela já deve ter casado e quem sabe tido até filhos, não deve mais nem se lembrar de mim... Por que estou olhando para o céu? Essa noite nublada e fria com traços de garoa está me lembrando a mim mesmo... Estou refletindo no ambiente a minha mente cheia de dúvidas e só um pouquinho lamentosa... Como teria sido este encontro ou essa vida alternativa? Acho que não teria dado certo, estávamos muito machucados pra tentar de verdade voltar... Mas e se, por acaso... Se por acaso, eu marquei a vida dela como ela marcou a minha... Ela pode até ter se envolvido com alguém, se casado até, mas ela... pode estar esperando por mim... Ela pode estar olhando para o céu também... Ela gostava das estrelas... Nossa! Quanta besteira estou pensando... É possível dar uma segunda chance a uma mesma emoção? Me pergunto ainda...

Marília tinha mesmo razão... A carta me surpreendeu. E agora, o que fazer com essa emoção??? Como de costume, Felícia transcrevia sua mente na escrita, ela estava sendo sincera ao escrever, mas eu percebo certa confusão... A ausência de cuidado na hora de usar as palavras sempre foi marca registrada dela. Mas, na época, isso era o de menos. Me lembro até com certa empatia de tudo o que vivemos, mas depois de tanto tempo não sei o que fazer... Minha mente racional está sem respostas, sem reação, enquanto as emoções se amontoam contraditórias. Agora entendo a mensagem real do livro de Marília... Agora entendo Pietro...

E pensar que isso tudo veio se desenrolando desde que Marília finalmente respondeu tudo o que eu queria saber, após eu ter conduzido ela a um hotel que ficava ali perto, na avenida, pois ela estava quase caindo, seu corpo já não tinha energia para ficar em pé tamanha a intensidade do choro. Nos sentamos num sofá no hall e procuramos ignorar os olhares estranhos da recepcionista a quem até cheguei explicar a situação, mas, pelo visto, minha sinceridade mal-treinada não tinha convencido muito...

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Continua.... 31/1/12 às 15:00

Por favor comentem o que acharam do capítulo de hoje;

Abraços Ed

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