É... São quase duas da manhã e eu aqui, longe de casa, com frio, no meio da rua, a alguns metros de uma pensão barata num bairro famoso pelas republicas de alunos da faculdade próxima; prestes a assistir e, quem sabe, até interferir a uma cena cujo desfecho será, certamente, uma surpresa. Eu não tenho idéia do que acontecerá diante dos meus olhos, não sei nem mesmo se vou conseguir assistir calado, talvez eu seja mesmo impulsivo demais e parta mesmo em defesa de uma história que não é minha, talvez eu vire as costas para ela, por eu não aguentar ver, e vá embora sem olhar pra trás; ou talvez minha simples presença aqui já seja o suficiente para causar algo novo, inesperado, uma reviravolta! Talvez até já tenha interferido em demasia... Tudo o que conversamos pode ter mudado de maneira definitiva o curso dessa conversa, correnteza de sentimentos, dos gestos, das ações e reações de ambas as partes, mas eu não pude ser indiferente... Ela precisava de alguém e eu precisava de uma resposta... Inesperadamente, estou diante dela agora...
Quem disse que seria fácil achar uma resposta tão profunda?
Pode ser apenas impressão minha, mas ela já não é a mesma. Sinto, pela sua hesitação aqui ao meu lado, pelo ritmo lento de sua respiração, as mãos relaxadas, os olhos fechados e a cabeça baixa, que ela está tentando ser forte... Está tentando juntar palavras e sentidos no fundo da sua alma já tão consagrada nesse ramo. Sinto que nem ela, afinal, sabe o que esperar, mas está, ao menos, reflexiva. Já é um começo. Me lembro da expressão de desespero banhando seus olhos... Parecia loucura.
E lá vai ela agora, meio insegura, dando o primeiro passo ao portão da pequena casa, ainda de olhos fechados. Não me surpreende que esteja, assim, tão assustada. Até eu estou muito assustado; essa noite pode derrubar por terra toda uma vida construída do que restou de dor num coração, o MEU! Essa noite pode me provar que estou errado e, embora quase todos queiram privar-se de erros, a minha vida inteira eu sonhei em me desmentir, em me provar o contrário do que acredito, só assim voltarei a ter esperança nas pessoas. Estou com medo, estamos com medo e isso é perceptível. Mas agora já não tem mais volta, eu preciso dessa resposta tanto quanto ela.
Vejo ela abrir os olhos, dar alguns passos e voltar a cabeça para trás, procurando, na minha imagem iluminada pela luz de um poste, alguma segurança. Me vendo ali, de pé, encostado ao poste, com meus braços nus cruzados e olhando atentamente para ela, ela vira o corpo trêmulo devagar e deixa rolar mais uma lágrima numa expressão desatenta que eu conheço bem.
Meu deus, o que fazer agora? Quantas vezes eu já tinha lançado esse mesmo olhar morto a tantas incontáveis pessoas? Esse olhar que implorava um abraço apertado... Me lembro bem das vezes que meu mundo caiu ou estava para cair, quanta força um simples abraço podia me dar. Mas, aqui? É arriscado demais para ela mesma.
Eu hesito, ela percebe e vai virando de frente para a casa do destino e andando lentamente, como quem dá tempo a um artista de rua para que se exiba com calma antes de lhe dar a moedinha.
Um abraço pode salvar uma vida, pode salvar uma história como essa. Um abraço pode salvar essa mulher, pode transmitir a ela toda a segurança que ela precisa para continuar viva mesmo se a casa cair. Eu não ganhei esse abraço, as coisas pra mim sempre foram mais difíceis. Tive que aprender toda uma nova estrutura de vida, mais regrada e rígida. Tive que buscar sozinho os presentes que essa dor, essa mesma dor que ela está vivendo, me deu. Tive que montar novos sentidos de formas tão incertas que a lembrança faz escorrer uma lágrima de compaixão. Um abraço é tudo que ela precisa para não perder nada, nenhuma das belezas que ela possui; e eu jurei que nunca deixaria alguém passar pelo que passei, não se essa pessoa aceitasse a minha ajuda. Pois bem, ela está mais que aceitando a minha ajuda, está pedindo aquele abraço... Vai, Carlos, seja homem, rapaz! Tá na hora de cumprir com sua palavra!
- Marília, espera!- digo abrindo os braços e um sorriso leviano.- Vem cá! Sei que precisamos desse abraço.
Ela me olha. Um olhar desses que se perdem entre os laços formados num encontro, quando já não se sabe mais o que significam os sinais. Ela vem a passos largos e me abraça demoradamente, apertadamente, e encosta a cabeça no meu peito devagar, me relembrando minha infância e os toques das borboletas que pousavam em mim. Meu sorriso ganha ares de nostálgico e verdadeiro. Ela vai ficando alguns momentos nos meus braços, tão tranquila... Mas chega a hora inevitável. Ela se afasta devagar, como se quisesse evitar o choque da distância, põe a mão esquerda sobre o meu coração, aponta, com um meneio de cabeça, a minha mochila ao chão, depois tira da própria bolsa a carta que escreveu ao meu lado e me entrega aquele papel dobrado descortesmente.
- Carlos, é para você essa carta.- ela me diz com a voz firme e me olhando nos olhos.- Por favor, leia quando a cena acabar...- eu tento interromper, mas ela coloca o dedo indicador na frente dos meus lábios pressionando-os levemente e prossegue.- Eu sei o que você vai dizer. Apenas leia, eu te peço, leia. Não a guarde durante anos como fez a uma outra carta.- fazendo uma clara menção à carta que eu tinha mostrado a ela no ônibus.- Eu acho que você deve ler aquela carta também. Acho que surpreenderá e te devolverá a vida perdida...- ela adocica a voz para continuar.- Adorei essa noite. Deus me mandou um anjo quando eu mais precisava. Por favor, pegue a carta, Carlos.
Eu levo a mão, lentamente, mais inseguro, e pego a carta dos segredos daquela alma. Claramente surpreso por essa resolução. Essa carta não era pra mim, tenho certeza, e, de repente, ela chega às minhas mãos, entregue pela própria remetente, e acompanhada com palavras tão delicadas e bem escolhidas. Tudo, nessa noite de maio, parece ser surpresa! Espere, ela está aproximando o rosto do meu? Tento virar o rosto, me afastar depressa, mas minhas emoções, reativadas pelo curto tempo de convívio com essa mulher, querem ver até onde ela pode chegar, até onde ela pode me surpreender. Meu corpo entende e para o movimento inquietante da minha razão........................................................................................................................................................
Continua... No dia 25/12/11 às 8:00
Por favor, comentem, o que acharam deste primeiro capítulo...
Abraços, Ed
PS: Obrigado pela ajuda Hina-chan!