EdLua.Artes

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segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Gênesis - 9º Capítulo

- Não!- ela me olhou nos olhos e deixou a bolsa cair no chão.- Isso já não vale nada! Toda essa vida foi roubada de mim e isso, tudo isso é apenas matéria morta.- os olhos dela se moveram de maneira estranha e conhecida ao reagir ao meu olhar já mais convidativo a uma conversa.- Carlos, né? Essa escritora nunca mais será a mesma, se é que ainda sobrará alguma mulher...- e ela voltou ao esconderijo de suas mãos.

Era depressão. Ela não valorizava nada mais do que possuía. Mais que isso, era crise existencial. Um daqueles momentos em que não ser nada parece melhor do que ser o que se foi ou o que se é. Eu não me lembrava mais o que é desvalorizar matéria por um ideal. Mas, meu nome, como ela sabia? Ela me conhecia, mas de onde? Eu não a reconheci imediatamente. Minha mente gastou algum tempo se sondando, tentando achar aquela mulher em algum lugar no tempo. Eu não me lembrava dela, mas também não me era uma pessoa tão estranha assim. Marília, agora as lembranças são claras como água e já não sei mais o que tudo isso significa.

Um homem de cabelo comprido e cavanhaque bem feito, vestido com um roupão branco abre a porta da pequena casa e, com um sorriso forçado e verdadeiro ao mesmo tempo, cumprimenta Marília com um beijo suave e distante na face, parecendo surpreso em vê-la. Ele lança um olhar desconfiado a mim, Marília o abraça bem forte e faz um carinho em seu rosto, ele fala alguma coisa e se solta rapidamente dos braços carinhosos daquela mulher, assim eles começam a conversar. Então esse é o Paulo...

Minha mente volta ao ônibus, à minha epifania. Escritora? Eu não conhecia nenhuma escritora exceto a autora daquele fantástico romance psicológico que iniciou a minha saída da depressão que perdurou por seis meses após Felícia ter me deixado. O livro mostrava um personagem puramente racional, um psicopata, que conseguia tudo o que queria. Hoje sei que na verdade ele não era psicopata já que, durante todo o romance, apesar de manipular muito bem todas as pessoas ao seu redor, não matou ninguém, mesmo quando isso era a melhor opção. Ele sempre dava um jeito de preservar a vida e afastar o antagonista, que era seu irmão, um sentimental que sempre botava a perder as conquistas da família por ter atitudes viciosas. Esse livro era assinado por Marília Buonicelli.

Eu havia comprado o livro junto com outros tantos que me chamaram a atenção numa bienal, um dia antes de conhecer Felícia e ela tomar pra si todos os momentos vagos ou não, da minha vida. Seis meses e três semanas depois, eu estava diante do dilema: o que fazer com tanto tempo livre? Me foi sugerido que fizesse o que queria fazer antes da minha namorada mudar tudo, mas eu não lembrava de quem era eu antes dela. Precisava de uma nova identidade e acabei assumindo como certa grande parte da personalidade do personagem criado por Marília. Demorou muito tempo até me parecer de verdade com o tal do Pietro, mas consegui.

No fim do outono daquele ano, a escritora esteve numa noite de autógrafos em minha cidade e eu estive lá para prestigiá-la. Sua obra havia me ensinado como não sofrer mais por males emocionais. Eu precisava agradecer a autora que, se não me falha a memória, não se parecia nem um pouco com aquela mulher ao meu lado no ônibus. É engraçado lembrar, mas conheci Marília na sacada daquele centro cultural, sem saber que era ela. Conversamos um pouco sobre a obra e ela pareceu espantada ao ver a minha interpretação, eu era tão novo e já tinha o coração quebrado em milhões de pedaços. Ela, depois de cinco minutos, pegou uma caneta e escreveu num marca-páginas do evento, o número do seu celular com seu nome ao lado, me disse pra ligar para ela dali a alguns anos e foi andando para dentro da multidão. Quando eu vi o nome dela pedi um autógrafo e ela me respondeu que quando me encontrasse de novo me daria o autógrafo. Fiquei olhando ela, uma mulher alguns poucos anos mais velha que eu, linda e talentosa. Não ia esperar alguns anos pra ligar, apesar de ter entendido que ela queria dizer para que eu amadurecesse um pouco mais as minhas idéias. Nessa época eu envelhecia mais rápido, a depressão me cobrava respostas e eu corria atrás delas. Posso ter sofrido muito, mas foi a época que mais cresci intelectualmente.

Uma semana depois liguei pra ela, tentei umas quarenta vezes querendo continuar a conversa sobre literatura, mas ela não atendeu. Talvez por isso eu tenha bloqueado a memória, eu ainda não era racional e isso tinha me machucado um pouco.

No ônibus, eu tinha apenas uma vaga lembrança; algo que parecia se assemelhar a uma vida que eu já havia perdido. Vida passada? Não podia ser. Eu apenas supunha ser Marília por que era a única escritora viva de quem tenho livros na estante. Mas precisava ter certeza que era ela que estava ali, chorando. De repente me lembrei de uma cena similar do livro que ela tinha escrito. Não se passava num ônibus, mas duas pessoas se encontravam depois de muito tempo. O encontro foi obra do acaso e, como a literatura permite certa fantasia, as duas começam a conversar sem se lembrarem uma da outra. Se não me engano, é a cena de abertura do livro.

- “Hey, como vai o coração?”- disse eu, com um tom de cantada, tentando encenar a primeira fala do livro com naturalidade e simpatia, mas estava tudo enferrujado dentro de mim.

Ela olhou pro lado com cara de espanto. Senti que ela estava pronta para me dizer algum palavrão e me dar um tapa, mas ela olhou bem no fundo dos meus olhos com aqueles olhos que começaram a se mexer e brilhar, sorriu e moveu os olhos para o canto superior esquerdo, tentando se lembrar de alguma coisa, depois olhou para minhas mãos.

- “Meu coração? Foi roubado pela realidade já há algum tempo.”- disse ela num tom de lamentação e, olhando vagamente para a porta do ônibus, voltou a chorar.

Era a frase que eu queria ouvir, a segunda fala do livro, que, tirando o choro, tinha sido encenada exatamente como eu a imaginava. Ela, a mulher do ônibus, era mesmo Marília Buonicelli, ou alguém que decorou o livro... Só podia ser a autora do livro que tanto me havia ajudado; por isso, minha mente sentia tanta necessidade de ajudá-la. Era retribuição. Eu não podia crer, e ainda acho que estou meio alucinado pela conversa com minha amiga esta tarde. Sete anos depois... Pena que ela estava assim tão triste. Ainda não era compaixão, mas era algo mais que humanidade. Eu precisava ajudar Marília. Tentei me lembrar da continuação do dialogo do livro.

- Está mesmo acontecendo isso?- murmurou ela, falando consigo mesma e se arranhando nos braços.- Nunca imaginei que um dia seria verdade. Um coração roubado...- ela riu com ironia.- Pra que viver sem coração? Eu perdi tudo... A última esperança me foi roubada por um mendigo, nada mais real...- suspirou, pegou a bolsa e tirou dela o estojo e o caderno, abriu o estojo devagar, pegou uma caneta, abriu o caderno na ultima folha e começou a escrever.- E a última página de uma vida tão feliz mostra palavras tristes, sem vida. A proteção falhou, a mentira acabou e isso talvez seja bom...- ela falava o que escrevia numa voz de choro.- Lágrimas rolam, e agora? Continuar viva? Tenho um apontador, mas o lápis finalmente acabou. A caneta sem tinta cospe ainda uma gota de sangue negro da minha vida. O próximo ponto será o final.- ela voltou a chorar desesperadamente.

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Continua... No dia 19/1/12 às 15:00

Por favor, comentem o que acharam do capitulo de hoje!

Abraços, Ed

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