- Eu gosto deste beco, tem meus olhos, meu rosto, meu cheiro e tudo o que percebo de minha intimidade, este beco é meu mundo. Um cubículo escuro espremido entre prédios.- dizia ela, eu posso ter perdido algumas palavras, mas o tom dessas não me pareceu de todo triste. Parecia mais reconhecimento lúcido, embora a voz de choro quase escondesse uma carga pesada de ironia.- Só tenho duas saídas: a pequena abertura por onde entrei me mostra, como janela, o abandono usando drogas e mulheres mentindo pra si mesmas, por necessidade, pra realizar os verdadeiros desejos dos homens estranhos...- o tom mudou para uma mescla de uma observação, que me pareceu muito crua, distante e nada pessoal naquela hora; mas, agora, entendo melhor a metáfora: ela estava tentando se ver de fora e de dentro ao mesmo tempo; tudo misturado com um pesar que perguntava a si o que as pessoas estavam fazendo. Ela fez uma longa pausa quase como se censurasse algumas palavras e escolhesse outras idéias, depois, continuou, num tom completamente diferente, intimista e profundo; dividindo o coração em partes, tentando numerizar sentimentos. Agora, sim, falava dela, mas era tão semelhante a mim, ao que eu tento fazer com minhas emoções.- A cidade levou das minhas mãos o meu coração, o coração de vidro que eu tinha acabado de resgatar da bagunça de um quarto de lixo, dois quartos de solidão, um terço de esperança, um ciclo de tristezas cruas, e quatro quartos inteiros de medos trancados que tive que encarar, sem querer e sem pensar...- outra pausa, e eu me perguntava o que a metáfora do coração de vidro roubado podia significar...- Se eu tinha meia chance com um coração transparente e lúcido, agora, sem nada nas mãos, sou eu mesma um nada, um vazio, e ocupo lugar de alguma lata de refrigerante que, mesmo vazia como eu, ainda pode ser reciclada.- prosseguiu Marília, fazendo cálculos condicionais, e, pelo estalido metálico que se seguiu à última frase, deduzi que ela esmagou uma latinha com o pé e depois a pegou. Falou a última frase que realmente me convenceu, era mesmo depressão.- Talvez esteja na hora de abrir as asas de corvo e subir aos céus pela outra saída.- e, em tom solene e frustrado, mas com certo teor de prazer, finalizou, assinando.- O beco, Marília Buonicelli.
Me aproximei, numa tentativa de chegar de leve, com a intenção de ser agradável; tinha a bolsa dela como pretexto e a poesia que, em mim, atuou como um calmante, para aliviar um pouco meus passos. Eu achava que ela estava tentando se re-equilibrar, mas logo ficou claro que, mesmo se essa fosse a intenção da poesia, o que, particularmente, coloco na forma interrogativa, não havia obtido o resultado desejado. Marília estava tremendo, enquanto se ameaçava com a parte mais pontiaguda de uma latinha de coca-cola amassada apontada para o pescoço. Sua expressão mostrava claramente que a razão emocional estava desafiando o instinto de auto-preservação. As mãos representavam por si toda a sua intimidade, a esquerda empurrava a latinha em direção à traquéia, a direita segurava a esquerda. Não me lembrava bem, mas eu estava torcendo para ela ser destra.
Eu sabia que agora eu precisava agir, mas, mais do que qualquer coisa, eu tinha que ser preciso; eu só tinha uma chance de dizer as palavras certas, afinal sendo ela uma escritora, a palavra valia alguma coisa pra nós dois. A pressão da escolha das melhores não era assim tão elevada, se comparada com a luta pra não agir por impulso. Acho que achei uma situação onde tudo o que fiz pra congelar as emoções, todo aquele treinamento pra me parecer com Pietro, tinha sido útil.
Analisando rapidamente tudo o que podia, percebi que ela não havia escolhido aquele lugar à toa. Ninguém escolhe absolutamente nada ao acaso, sempre tem alguma mensagem, algum estímulo, nem que for inconsciente que interfere no julgamento. Isso já era provado há tanto tempo, desde que começaram a fazer interpretação de sonhos. E aquilo me puxou, de alguma forma, a lembrança das aulas sobre pesadelos.
A própria circunstância me trouxe claramente a imagem de um pesadelo clássico. O ambiente representando o campo das emoções que influenciam nas ações. A poesia também me fez acreditar nisso, o beco não era apenas um local onde ninguém a incomodaria, era mais a manifestação física mais próxima do que ela estava sentindo. Mas por que o pescoço, não os pulsos? Beco, pescoço... Tinha alguma relação... Tinha que ter. Sufocamento. Ela estava se sentindo sufocada pelas emoções. Parecia cabível, mas não se encaixava totalmente. Foi, então, que meu subconsciente me trouxe à memória outra passagem do livro que Marília escreveu. Uma das reflexões de Pietro que tinha caído como uma luva para mim: “A sinceridade das palavras, minha amiga, nada significa diante das aparências dos atos, por isso tantas vezes eu menti, polpa um pouco de desilusão, sabe?” Ah, Pietro! Até hoje todo que você filosofava tinha mesmo razão de ser, mas agora tudo está em xeque... Bom, a noite ainda não acabou... Posso ter surpresas.
Marília agora está segurando a mão de Paulo, impedindo que ele entre e feche a porta. Creio que, depois dos pequenos gestos de carinho, Paulo decidiu entrar, julgando que a conversa já não levaria ninguém a nada, mas a escritora ainda tinha algo a dizer e eu reconheço o gesto que ela está fazendo, acariciando a própria face com a mão dele.
- Marília, trouxe sua bolsa...- falei em voz baixa, creio eu, naquele beco.- Olha, eu não sei se...- respirei fundo e medi bem as palavras.- Se você se lembra, mas há sete anos a gente teve uma boa conversa a respeito de um brilhante trabalho de sua autoria...
- Carlos, por que está me seguindo?- indagou ela em tom claro de quem se sente invadida.- O que você quer de mim?
Eu podia ter dito qualquer mentira que se prestasse a sair, mas tem horas que a franqueza é tão espontânea que, quando percebemos, ela já foi dita. Quando me vi falando verdades sem pensar nas consequências eu já sabia que o caminho estava se tornando perigoso. A primeira barreira tinha caído e eu teria que sustentar firme a segunda, a relação não poderia passar de psicólogo/paciente.
- Conversar com você e, quem sabe, depois ganhar um autógrafo.- disse eu olhando fixamente para o rosto dela.- Quero ter a chance de ajudar a criadora do Pietro que me ajudou tanto a passar por momentos difíceis. Marília, você me ajudou muito, Pietro é meu modelo mental...
-Você...- disse ela soltando a latinha e rindo.- Que pena! Sete anos e nada mudou... Continua com Pietro como mo...- e riu de novo.- Deixa pra lá!
- O que é tão engraçado?- estranhei aquele riso tão espontâneo vindo de alguém que estava em depressão profunda. Aquilo aguçou todos os meus pensamentos, afinal, nunca tinha visto ou lido, nem mesmo ouvido nada similar.
- Carlos, você é feliz?- perguntou ela com aquele olhar profundo expressando a tristeza que ela sentia.
Eu não soube o que dizer. Pensei em frases simplistas, mas... Ah! Qual a graça de mentir e ainda tentar a simplicidade? A conversa tinha ganho, de repente, algo a mais com essa pergunta direta e tentar desmerecer o que estava acontecendo com jargões populares, não sei por que, mas não fazia sentido. Era melhor continuar no tom íntimo, mas, é claro, sem perder as minhas próprias rédeas. Me surpreendeu tudo isso; quer dizer, ela mal me conhecia e já tinha tocado assim, sem mais nem menos, no único ponto fraco da minha orgulhosa rede defensiva. Era o ponto fraco por que não tinha um argumento sustentável a longo prazo. Felicidade estava longe de ser um medo, mas ninguém, desde que eu vivi meu processo de renascença pós-separação, tinha ousado me perguntar isso, tamanho foi meu distanciamento e minha reação de descrédito para com os relacionamentos humanos. Nem eu mesmo me permitia indagar se estou sendo feliz. Falando a verdade, a pergunta que eu mais me fiz durante sete anos foi “e agora Carlos, como você vai interpretar os fatos, que compõem a fina rede daquilo que se chama de realidade, para que eles não te machuquem de novo?” Pessoas costumam me perguntar por que sou arrogante, por que sou tão duro, tão sério... Letícia é que às vezes pergunta se está tudo bem e costumava se impressionar com minha reação inabalável. Sempre estou bem, mas se estou feliz é outra coisa!
- Sinceramente, eu não sei o que é felicidade há um bom tempo, Marília...- disse em tom reflexivo enquanto eu entregava a bolsa para dona pela terceira vez.- Mas talvez seja melhor assim, sempre bem, sem momentos de tristeza ou sofrimento. Tudo perfeitamente controlado...- Marília me olhou com um ar de repreensão, mas mesmo assim continuei.- Sabe, a vida foi me ensinando a ser forte e pra ser forte a gente tem que se conhecer muito bem, por que. no final das contas, tudo o que temos é nossa mente e ás vezes nem ela...- ela começou a chorar e pegou a bolsa da minha mão.- Mas, será que você pode me contar o que está acontecendo com você?
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Continua... No dia 28/1/12 às 15:00
Por favor, comentem o que acharam do capitulo de hoje!
Abraços, Ed
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