Quem diria que ela ficaria assim tão serena diante da verdade? Mas, para isso, tive que apontar todos os sinais físicos e mecanismos mentais que ela estava mostrando e explicar que aquilo era um medo desnecessário, entre aspas, é claro, por que era só não criar expectativas em cima do que não é certo e fica tudo bem. Tive ainda que demonstrar, com metáforas, que expectativa só machuca por que espera algo e, se não acontecer o esperado, a situação se torna frustrante, pois, nunca estamos realmente preparados para o imprevisto; e, também, argumentar que, além de tudo, expectativa causa sofrimento antecipado, pois, é um tipo de ansiedade bem difícil de controlar por ser quase um mecanismo lógico-racional que funciona com base em sentenças condicionais aplicadas indevidamente ao campo emocional, e que, se não se podia controlar totalmente, era possível torná-la menos nociva.
Até que ela mesma percebeu que queria mesmo saber a verdade sobre o que tinha se passado na cabeça do Paulo, não importava qual fosse. Ela me pediu pra ir com ela, afinal, ela tinha tomado uma decisão importante e, admitindo estar assustada, disse que minha presença já ajudaria muito. Ela lavou o rosto no banheiro do hotel, para tirar um pouco o aspecto de choro, e, logo, pegamos o primeiro ônibus.
Eram 22:30 quando saímos para a avenida e cruzamos uma passarela para aguardar o tal ônibus e até que esse passou rápido pelo nosso ponto. Essa hora sempre há alguns lugares disponíveis, mas nós tivemos a sorte de sempre encontrar um banco inteiro só pra gente, assim pudemos nos sentar sempre um do lado do outro e conversar.
Durante o trajeto, Marília foi conversando espontaneamente comigo sobre o que ela esperava que fosse acontecer quando chegássemos aqui. Conversar é mesmo um ótimo jeito de se manter sob controle. Ter alguém que nos escute é mais que gostoso é uma necessidade. Eu acho incrível, mas ela foi concluindo sozinha que não devia esperar nada, ela estava fazendo o que ela achava o correto a se fazer, o que ela precisava fazer; e, se a necessidade dele fosse mesmo permanecer sem falar com ela, ela teria de aceitar.
Eu fui realizando o mesmo processo junto com ela, sem exteriorizar pra não atrapalhar as reflexões dela. Eu realmente não disse quase nada e não sai de uma postura que mostrava um interesse enorme e um distanciamento maior ainda, pois eu estava no fundo da minha consciência, me trabalhando, percebendo que minhas próprias expectativas podiam ser resumidas e facilmente resolvidas, a frustração toda podia ser aceita com certa benevolência se eu a encarasse como um aprendizado. Tudo isso foi se revelando nas palavras da escritora e depois de tantos anos acertando tudo pelo racional e dispensando as emoções, eram elas que vinham me resgatar e mostrar que eu já estava pronto para aceitar, como um adulto, que a separação tinha me libertado de certos padrões sociais e certos medos que eu tinha; como, por exemplo, o medo da solidão e o tabu de fazer sexo por prazer. E pensar que até hoje nem acreditava mais no dito “fazer amor”... E agora eu tenho vontade real de me ligar afetivamente com alguém...
Tudo por que, embora eu estivesse com uma perna dobrada em cima da outra e os braços cruzados, mas buscando sempre o olhar dela, ela estava aberta, gesticulando bastante, ela estava segura comigo e isso estava me fazendo bem; de vez em quando ela até me arrancava um sorriso, graças a algum gesto carinhoso...
Ela foi muito carinhosa durante os quarenta minutos que ficamos naquele ônibus e isso começou a me agradar. Ela fez grande parte do percurso com a cabeça encostada no meu ombro, mesmo que eu estivesse numa postura fechada e por mais que tentasse não quebrar minha solidão, às vezes, enquanto ela falava, eu fazia um carinho nos cabelos ou no rosto dela para retribuir o carinho que ela fazia no meu braço. Claro que eu sabia que ela só estava fazendo aquilo por que era o jeito dela de se sentir segura, mas ela acabou me deixando cada vez mais confortável, mais próximo, mais íntimo. Já não queria apenas as respostas ou cumprir promessas. Percebi que gostava mesmo de estar com alguém tão madura que me permitia me descobrir cada vez mais e seja lá como fosse o resto da noite eu queria continuar por perto, mas ai veio um bloqueio... Percebi que eu estava me apaixonando por ela e, naquela hora, me veio do inconsciente a certeza que eu ia passar pela mesma dor novamente, era mesmo um trauma bem forte em mim...
E eu realmente sinto que agora esse trauma já foi superado pra sempre. Não está mais escondido debaixo de um jeito arrogante de racionalizar as emoções. Esse meu jeito racional de ser eu não vou mais mudar, mas pretendo me refinar, permitindo que as emoções boas continuem fazendo parte dos meus dias mesmo que sob vigília permanente, principalmente a felicidade. Estou feliz. De uma maneira calma e sensata, mas, feliz. Me sinto livre. O medo já passou e acho que estou pronto pra aprender a amar sem cair na obsessão das paixões. São essas obsessões que nos machucam nos relacionamentos, o medo de perder o carinho e atenção do outro, nos faz cometer pequenas loucuras que podem extrapolar os limites de tudo. E são essas loucuras que eu não quero mais pra mim.
Mas aquele medo de me entregar ainda persistia, quando Marília começou a perguntar sobre mim, ela queria me conhecer melhor, conhecer a minha pessoa. Isso já era no terceiro ônibus. Ela precisava descansar um pouco e a viagem do segundo ônibus seria mais comprida um pouco, segundo a amiga dela. E de fato foi; então, depois de conversamos um pouco mais sobre a vida dela antes de Paulo, época em que, segundo ela mesma, e com isso eu tinha que concordar, se lançou verdadeiramente como escritora criando um estilo próprio de escrever. Fiquei sabendo que ela conheceu Paulo num encontro de artistas e, estando fascinada com o jeito peculiar das fotos que ele produzia, o chamou pra ser ilustrador do terceiro trabalho dela, e ai eles, como já era de se esperar, se apaixonaram. O namoro deles não foi estável, mas ela acreditava ter sido o período mais próspero de sua vida e atribuía isso a estar com ele. Contestei esse fato dizendo que, mesmo se fosse outra pessoa, se houvesse uma grande ligação afetiva, ela se desenvolveria do mesmo jeito ou até melhor, se a pessoa fosse mais estável. Ela concordou com um sorriso tranquilo, mas ponderou que, na época, ele foi o único com quem ela sentiu que tinha afinidades. Entretanto, ela ia completar a frase dizendo que na verdade tinha uma outra pessoa que havia sim mexido com ela, mas não disse quem... E pelo olhar dela, eu achei que talvez pudesse ter sido eu... Depois daquele olhar, ela se encostou no meu ombro, me abraçou e dormiu até perto do ponto que tínhamos que descer.
Enquanto ela dormia, encostada em mim, tão sensível que parecia ter voltado à fragilidade, eu tentava fazer um distanciamento psicológico senão acabaria me envolvendo com ela e ela dizia ainda amar o Paulo, embora estivesse dormindo quase no meu peito como se fosse um casal bem estruturado depois de uma noite de prazeres. Me custa acreditar que ela pode gostar de mim, todos os sinais mostram que sim, acho que só saberei daqui há pouco quando ela voltar. Por enquanto ela ainda parece estar conversando com Paulo e a mulher que apareceu na porta que, agora, olhando atentamente, parece estar usando um pingente com forma de coração folhado a ouro.
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Continua... 18/2/12 às 15:00
Por favor comentem o que acharam do capítulo de hoje.
Abraços Ed
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