- Eu ia dar dinheiro pro mendigo comprar comida, tamanha foi a impressão que tive de que tudo ainda tinha uma mínima chance de dar certo... Fiz um trato com ele... - e ela parou a frase por uns instantes, de novo.- Eu entendi quando ele apontou a faca pra mim, a vida dele deve ser muito difícil, dura e assustadora. O trato era que ele podia levar tudo que eu tinha comigo, menos o pingente, o dinheiro dos ônibus que eu tinha que pegar e a chave do meu carro que não serviria de nada pra ele por que o carro está concertando e vai demorar muito pra ficar pronto. Cheguei até a mostrar as coisas pra ele, e ele aceitou, já que poderia vender quase tudo, a bolsa, os livros, os dois pen-drives virgens, o celular novo... Eu estava pegando as minhas coisas quando gritaram que eu estava sendo assaltada e surgiu aquele intrometido... Pessoas tendem mesmo a julgar as aparências e não buscar os sentidos, não é?- concordei com um gesto e a deixei continuar, totalmente admirado com a bondade com a qual ela tratou um mendigo estranho; aquilo fugia completamente da minha concepção de vaidade, aquilo sim foi coragem, como eu havia deduzido. Dialogar com um assaltante armado... Ela é incrível!
Marília e Paulo pararam de falar e estão apenas se olhando. Ele está um pouco menos combativo, sua postura mudou. É perceptível que ele, agora, está pronto para recebê-la em seus braços. Ela chega até a preparar o abraço, mas contém o movimento antes de um toque e fala alguma coisa, ele responde com um olhar para dentro da casa e um gesto afirmativo feito com a cabeça. Os dois se olham e ele chama alguém com outro gesto de cabeça. Aparece na porta da casa uma mulher um pouco mais alta, com a pele mais morena e mais gordinha que Marília, vestida com uma camisola muito sensual. As duas trocam olhares e falam alguma coisa... Marília não parece brava ou triste... Apenas, serena e, talvez, um pouco mais fechada, seus braços se cruzaram na frente do corpo há alguns segundos... Bem diferente da postura que adotou comigo há pouco mais de quarenta minutos, aquela era uma postura meiga. Mesmo estando de costas dá pra perceber que ela está sendo simpática, mas com uma retração muito grande. Ela acaba de dar um passo pra trás e contrair um pouco os ombros... E foi essa postura de retração que ela desmanchou em mim, há pouco. Eu convivi com distimia, uma depressão com sintomas mais leves, porém, mais duradouros, pode persistir por anos e levar ao suicídio por conta da sensação de tristeza constante. Eu sábia disso há muito tempo, mas não queria me tratar por que achava que seria inútil voltar a ser como antes... Minha cura só começou quando...
- O povo do ponto e do ônibus me provou isso. Dar parabéns à violência só por que parecia um salvamento, é ridículo! Do mendigo eu não tenho raiva nenhuma, sei que, na situação dele, até eu fugiria da briga com o que pudesse levar nas mãos...- Marília olhou para o chão e continuou.- Eu não queria ter que acreditar... Mas o Paulo parece fazer parte desse grupo... - ela deixou as últimas lágrimas caírem e me olhando nos olhos, continuou com uma voz mais aveludada.- Já pra você, sou eu quem deve desculpas... Quando você disse que você tinha se inspirado no Pietro, eu pensei que você fosse do tipo de pessoa que não enxerga além do que está escrito nos livros. Pietro não é um exemplo de felicidade, mas sempre soube... Você não é o Pietro, você...- ela fez um carinho no meu rosto, como que para ver se eu era real, mas eu gostei tanto disso, faziam mais de sete anos que não sentia um carinho verdadeiro no rosto.- Ainda está comigo. Pietro jamais seria capaz de tanta humanidade, ele teria chamado alguma entidade do governo que me detivesse. Você, Carlos, pegou só a parte boa do Pietro, o gosto pelo sentido, mas imagino que isso já era parte de você... Agora eu entendo você... Você é como eu, gosta dos sentidos... - ela se levantou, pegou a bolsa, tirou dela um papel e uma caneta, escreveu exibindo um sorriso sincero e me entregou o papel, me dando um beijinho no rosto.- Eu prometi um autógrafo e você merece... Obrigado, Carlos, você me ajudou demais. Não precisa se preocupar, eu vou voltar pra casa da minha mãe... Tchau...- me deu um outro beijinho e ia sair.
Mas eu já não podia deixar ela sair da minha vida, não sem antes vê-la feliz, de verdade, e não nesse tom de resignação. Eu não podia deixar ela seguir o mesmo caminho que eu, aquele caminho triste e solitário. Agora eu consigo traduzir assim aquele misto de emoções e pensamentos sem direção e o espanto de alguém me descrever tão bem em poucas palavras. Eu podia até já ter conseguido ajudar ela a não ser tão triste quanto eu, mas não era o suficiente. E tudo me fez pegar a mão dela, olhar em seus olhos e dizer numa voz firme que eu não usava há muito tempo, uma voz decisiva e calma:
- Marília, seja sincera, você está feliz?- ela me correspondeu o olhar e balançou a cabeça negativamente, enquanto se virava de frente pra mim.- Como eu pensei... Você precisa do sentido de tudo, não é? Precisa fechar ou reabrir de vez sua história com o Paulo, precisa conversar com ele!- ela ia mexer a boca, mas eu antecipei.- Você não precisa de pretexto nenhum para conversar com alguém que você gosta, só precisa assumir que quer conversar, e, se precisa de segurança emocional, eu vou com você e fico até o fim ao seu lado, eu prometo! Por favor, faça isso por nós dois. Nós dois precisamos saber se segundas chances existem e se as emoções podem mesmo nos fazer felizes!- olhei bem no fundo dos olhos dela, ela sorriu e me abraçou forte parecendo confirmar que ia, mas creio que, se correspondi o gesto, foi simplesmente pra não ficar parado. Acho que ainda não estava totalmente pronto pra apertar o abraço e demonstrar que realmente sentia.
Depois de me soltar, porém, Marília começou a tentar se convencer de que não devia vir até aqui com argumentos falsos. Era perceptível que ela estava com medo. Suas mãos paradas, sem fazer gestos, a hesitação em me olhar e os movimentos laterais de cabeça feitos de maneira rápida e constante acusavam a falsidade de suas palavras; enquanto estas me diziam que já estava tarde pra pegar os três ônibus necessários pra se chegar do outro lado da cidade, por isso era contramão para mim, ele não ia atender e ela não queria me fazer perder tempo. Eu neguei tudo o que me dizia respeito, mas concordei que ele podia não atender, não mentiria pra ela.
Embora eu soubesse que tudo aquilo era o mesmo drama que eu fiz com a carta do envelope rosa, eu via o mesmo medo e o mesmo desejo, a mesma ânsia de saber a verdade não querendo que ela se revelasse de maneira que nos cause dor; quando tentei acalmar ela, por várias vezes pensei até que ponto eu podia ir sem manipular a verdadeira vontade dela, já que o medo estava cumprindo seu papel fundamental de evitar sofrimento, mas estava prendendo Marília numa cadeia de ilusões. Claro que ela podia escapar disso mais fácil que eu e até sem ajuda, existia essa possibilidade, porém, se havia essa, havia a contrária.
E a contrária eu sei bem como é duro de quebrar o gelo que se forma. Leva-se muito mais tempo do que sabendo a verdade, agora eu sei. Por via das dúvidas, decidi deixar de lado a questão ética e arriscar que ela tinha que saber a verdade pra se libertar dessa história.
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Continua... 15/2/12 às 15:00
Por favor comentem o que acharam do capítulo de hoje.
Abraços Ed
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