EdLua.Artes

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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Exercício de Teatro que transformei em Conto

Boa Madrugada, gente!
Para contextualizar. Faço Curso de Teatro com Almir Rosa, tenho aprendido muito com ele. Na última aula, ele dirigiu micro-cenas baseadas em situações fictícias e pediu para que os alunos continuassem somente e especificamente as suas personagens como eles agiriam após a cena, para isso não poderíamos nos apegar a escrever qualquer expressão da personagem com quem contracenamos. Mesmo tendo prática na área prosaica, meus contos sempre procuram relatar ao máximo todas a expressões de todos os personagens para que o entendimento seja apurado em todas as dimensões. Ação e reação são constantes nos meus trabalhos prosaicos. Pra ser sincero, nunca tinha penando em deixar uma parte escondida e tentar mostrá-la à partir da reação. Decidi encarar como um novo desafio. O resultado está neste pequeno conto, posto também o perfil que o professor deu para a minha personagem. Comentem. Abraços!
Ed


Perfil: um homem de alta classe social, por volta de 35 anos, dono de uma grande empresa, casado, sem filhos.   

Despedida

Ângelo chega animado em sua casa e vai ao encontro de sua mulher, abraçando-a com ímpeto, mas carinhosamente. Ele se afasta um pouco, cruza as pernas em sua cadeira de rodas e comunica em tom claramente eufórico, olhando no rosto de sua esposa: “A grana da viagem saiu, podemos ir amanhã mesmo!”. Fica sem palavras ao ouvir a resposta de sua esposa e, apenas depois de algum tempo olhando para chão, volta o olhar para ela e indaga num tom descrente e visivelmente alterado: “Mas... é a viagem que você sempre quis fazer...!”. Diante da resposta, Ângelo vira a cadeira de lado para a esposa, como se estivessem sentados num sofá, e seus gestos e postura indicam tanto desnorteio e tristeza, quanto certo distanciamento. Ele não chora nem ri, apenas, olha vagamente para as coisas. Sem reação imediata, ele procura não olhar para a esposa, tentando se orientar em alguma coisa mental, algo só dele. Finalmente, Ângelo gira as rodas de sua cadeira, com certa fraqueza, lentidão, mas sem se demonstrar abalado, até um piano, abre a tampa das teclas, respira fundo, dedilha bruscamente um glissando e algumas notas de uma música. Para, também bruscamente, abaixa as mãos até as coxas, lentamente, e fala, numa voz baixa, olhando para as teclas do piano: “Tudo bem, eu assino. Já está tarde, dorme aqui... amanhã a gente vê o que faz.” Volta a tocar a música de onde parou. Não dirige mais o olhar nem a palavra à esposa. Só se retira do piano para dormir. Dorme na sala, tirando o casaco e usando-o como cobertor.

No dia seguinte, Ângelo acorda e, com movimentos lentos, olha o relógio, se espreguiça, veste o casaco, vai até o piano, pega um porta-retrato, admira a foto por algum tempo, deixa o porta-retrato virado pra baixo. Pensa por algum tempo, olha redor de si como se estranhasse o local, mas com um ar de saudade. Ângelo, então, pega um bloquinho-de-notas e uma caneta em cima do teclado, escreve um recado, descarta a folhinha do bloco, amassa, joga ao chão, suspirando e balançando negativamente a cabeça, e torna a escrever. Descarta essa folhinha, deixa o bloquinho e a caneta em cima do piano. Torna a pegar o porta-retrato, prende a folha junto à foto, deixa o porta-retrato em pé sobre o piano. Toca a mesma música. Vai até a mesa do telefone e liga para alguém, dizendo: “Remarque todas as reuniões deste mês para conferência de vídeo e me encontre em Paris semana que vem. Tout ira bien, Tout ira bien!” Ângelo pega seu passaporte e seu cartão de crédito, guarda no bolso do casaco e sai, rodando lentamente sua cadeira de rodas, com um leve sorriso de agradecimento. 

Edgar Izarelli de Oliveira
      

Um comentário:

  1. Edgar, minhas impressões se apegam a força do diálogo memorialístico ( o interlocutor está na memória) tão bem reproduzido em seu texto. O personagem faz de seu presente uma experiência reconstitutiva de um passado não revelado. Ou seja, o instantâneo, marca da temporalidade de cena através de sua descrição espacial, deixa velada a história externa da personagem para que o leitor possa, ainda que por via de um narrador em 3ª pessoa, sentir a angústia, não declarada, do protagonista. Gostei muito e espero que esse seja o primeiro de uma série de textos introspectivos que você escreve, ou escreveu. Outra observação, estou escrevendo um romance desde 2000, cujo nome é “Evolução” o protagonista se chama Glauco e o antagonista, personificação da severidade e da materialidade inexpressiva, chama-se Ângelo. Espero um dia poder lhe mostrar. Um forte abraço, parabéns e muito obrigado por nos presentear com tão belíssimo trabalho.

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