Eu estava tomando consciência das emoções. Quando alguma coisa me incomoda, eu sempre procuro descobrir por que. Acho, inclusive, que foi por essa ânsia de descobrir o que se passa nos meus mais profundos locus mentais, que, depois de suplantada tanta dor emocional, eu resolvi fazer psicologia. Não, eu não queria ajudar os outros. Só queria me ajudar. Mergulhei fundo na minha pesquisa sobre as emoções, justamente pra tentar me esquecer delas, de como elas tinham me ajudado a dar passos largos e determinados, ainda que fossem tiros no escuro, ou promessas ao futuro. Me veio a menção de um riso ao semblante agora. Promessas, Carlos? Já não sabes mais nem o que é uma simples afirmação, vive de especulação. Tuas orações freqüentam o campo das teorias não-provadas, onde “talvez seja” e “se for” são as únicas constantes. Você já prometeu algo, Carlos? Me pergunto, ainda, como perguntei à tarde, quando percebi Letícia por perto.
Minha amiga deve ter percebido que eu estava em estado mental alterado, em alfa, e se reservou, em silêncio, a alguns passos longe de mim. Sinal de respeito? Talvez. Ou, vai ver, era assombro por ver que, nem em choque, minha mente parava de se sondar. Ela me olhava com tamanha intenção de chegar à porta da minha mente que conseguiu anunciar a sua presença.
- Talvez, Letícia, se você quiser falar comigo, seja melhor você se aproximar, é só um palpite.- disse eu sem parar de ler o livro que tinha em mãos ou de acariciar a carta.
- Como você sabe que sou eu?- perguntou se aproximando.
- Dois mais dois são quatro?- respondi em tom de lógica e a olhei nos olhos.- Puro raciocínio. Você estava preocupada comigo, deve achar que pode me ajudar depois de ter assistido a uma aula inteira sobre a minha mente. Além, é claro, de estar curiosa para saber o que aconteceu para que eu me transformasse nisso e estar assustada e chateada por eu ter deixado seu abraço na situação em que estava e, ainda mais, você é a única pessoa com quem converso. Os outros não viriam nem se eu morresse...
- Puxa!- disse ela impressionada sem perder a calma e caminhando para diante de mim.- Cada vez mais você me surpreende com essa capacidade de pensar em tudo e estar quase sempre certo.- sentou-se cruzando as pernas e deixando a mochila no chão.- Acertou quase tudo, Carlos, exceto que sei como funciona sua mente, até gostaria de saber...- fez uma pausa, olhando pra carta que havia no meu colo, depois continuou.- Mas acho que você também não se entende muito bem...
- Eu sei exatamente como minha mente funciona. Eu mesmo criei e controlo cada aspecto do meu pensamento.- disse eu sem falsidade.- Cada ponto forte, cada mecanismo de defesa, cada trauma, até a sombra eu sei onde está.
- Carlos, você não saiu dos meus braços porque estava com raiva ou porque precisava se mostrar independente e forte nem pelo choque da surpresa.- disse ela com absoluta certeza.- Você saiu porque essa é sua sombra, a parte oculta de você que, se evocada, te dará mais força que qualquer outra coisa no mundo. A sua sombra é a relação inter-pessoal, estou certa?
- Sim, está.- respondi com um riso sério nas faces e fechei o livro que estava lendo.- Continue.
- Você tem medo de usar isso a seu favor...- fez outra pausa para refletir e logo continuou.- Por que você já conhece a força que isso te dá...- ela me olhou espantada como se finalmente tivesse descoberto a vida em Marte.- Não! Você tem medo do preço a se pagar... É claro! Sua rede de pensamento é básica, afinal! Você prefere acreditar que as pessoas se relacionam por razões, por que a razão não forma vínculos, assim não te dá a força, mas te dá a estabilidade de não ter que sofrer rupturas!
- Interessante.- respondi sem hesitar.- Mas não faço isso por medo e, sim, por opção. Medo indica possibilidade de ocorrer algo errado, certo?- ela balançou afirmativamente a cabeça, embora seus olhos estivessem indecisos; prossegui.- Pois bem, e eu descobri que mesmo que todos de uma relação cumpram com o contrato pré-estabelecido para que aquela relação funcione adequadamente, a relação vai cair. Eu não tenho o interesse de começar algo que já sei que vai falhar...
- Carlos, e o que está atrás desse desinteresse?- perguntou ela numa voz meio irônica a qual respondi com um olhar frio e interessado.- Medo.-continuou.- Medo da dor da separação.
- E para que eu temeria algo que já superei tantas vezes?- perguntei frio e direto.
- Se lembra do que você me disse quando me conheceu e eu vivia triste e não sabia por que?- jogou ela e, ao ver minha expressão de surpresa, engrossou a voz para que se assemelhasse à minha.- Há coisas que cremos ter superado, mas, na verdade, permanecem como medos e angústias latentes em nós.
Eu vi aquela conversa se passando como filme diante dos meus olhos. Tinha sido há dois anos. Ela andava triste e eu me interessei pela tristeza dela, pois, estávamos estudando a primeira parte da psicologia clinica, e por que, de certo modo, eu era o único que percebia aquela angústia. Me aproximei dela para testar minhas habilidades e acabei descobrindo que o problema era uma frase forte de uma colega da terceira série. Ela achava que já havia superado, mas haviam resquícios claros daquela relação... Medo de estar fazendo escolhas que levavam ao fracasso. E, mesmo tendo tudo pra ser feliz, ela continuava presa... Eu parei e olhei pra esta carta, a de Felícia, que estava em minhas mãos. Resíduos físicos de que ainda não havia superado e nem sabia se queria superar, eu poderia viver minha vida inteira nesta esperança.
- Nossa, Letícia, professor Sérgio analisou tão profundamente assim a minha mente só com uma conversa tão curta?- eu creio que ri.- Muito bem, Letícia, agora você já conhece tudo da minha mente, pode me deixar. Eu sei que seu interesse era aprender a analisar o mundo como eu.
-Não, você acaba de errar duas vezes.- respondeu minha amiga muito séria, como há muito não a via.- Professor Sérgio, Carlos, não é assim tão baixo como pensas. Depois que você saiu, ele não falou mais de você; ele não tinha intenção nenhuma de usar sua mente como exemplo para uma sala faminta. Falou de uma terceira pessoa com tanta propriedade que todo mundo percebeu ser ele mesmo. Vê, Carlos? Ele passou também por essa fase racional, por isso ele te entende tão bem e quer te ajudar.- ela me entregou aquele livro que estava lendo no ônibus.- Até pediu para que eu te entregasse isso afirmando que ia te ajudar a entender o que ele explicava a respeito das emoções. Pegue. Quanto a mim...- continuou depois que eu já tinha pego o livro e estava tentando acompanhar os rumos inesperados da conversa.- Carlos, eu não te uso pra nada, quero ficar perto de você por que confio em você. Você me curou de coisas que nem sabia que eram doenças. Eu só quero poder retribuir e tirar você da defensiva antes que tantos muros pra não deixar que as emoções destrutivas entrem, te ceguem ainda mais para as boas emoções de quem te quer bem...- ela abriu os braços.- Vem! Se deixe abraçar pela amizade, Carlos!
Eu abri os braços e ela me abraçou bem forte, me fazendo prometer que eu ficaria bem. Senti pela primeira vez que tenho uma amiga mais leal... Depois ela teve de ir embora; até me ofereceu carona, mas eu recusei, queria ficar ali e reorganizar a bagunça da minha mente... Após algumas horas de reflexão, acabei deduzindo que o interesse dela era simplesmente me fazer acreditar que existe amizade para poder estudar a reação de alguém que volta a sentir a força de um abraço depois de anos racionalizando que não há força nenhuma em nenhum tipo de carinho e encarava carinho como distração para cérebro ou manipulação. Tinha sentido. É época de pensar no TCC e minha mente daria um prato cheio para qualquer bom aluno de psicologia que gostasse de discussões sobre bloqueios relacionados à área sócio/afetiva, justamente a área de interesse do professor Sérgio. Além do mais, interesse por retribuir o que fiz era interesse por se testar me usando de cobaia.
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Continua... No dia 7/1/12 às 15:00
Por favor, comentem o que acharam do capitulo de hoje!
Abraços, Ed
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